A destina??o universal dos bens, primeiro princ¨ªpio de toda a ordem ¨¦tico-social
Pope
"Transformar a realidade social com a força do Evangelho, testemunhada por mulheres e homens fiéis a Jesus Cristo, sempre foi um desafio e, no início do terceiro milênio da era cristã, ainda o é. O anúncio de Jesus Cristo «boa nova» de salvação, de amor, de justiça e de paz, não é facilmente acolhido no mundo de hoje, ainda devastado por guerras, miséria e injustiças; justamente por isso o homem do nosso tempo mais do que nunca necessita do Evangelho: da fé que salva, da esperança que ilumina, da caridade que ama. A Igreja, perita em humanidade, em uma espera confiante e ao mesmo tempo operosa, continua a olhar para os «novos céus» e para a «terra nova» (2Pd 3, 13), e a indicá-los a cada homem, para ajuda-lo a viver a sua vida na dimensão do sentido autêntico. «Gloria Dei vivens homo»: o homem que vive em plenitude a sua dignidade dá glória a Deus, que lha conferiu." (Cardeal Renato Raffaele Martino, na apresentação do )
Depois de ¡°Na base da doutrina social, a concepção cristã de pessoa¡± e ¡°Buscar a justiça, atravessar o conflito, custodiar a dignidade: o caminho da doutrina social¡±, o teólogo Felipe Sérgio Koller* dá sequência a sua série de reflexões sobre o pensamento social de São João Paulo II, tratando hoje da "destinação universal dos bens, primeiro princípio de toda a ordem ético-social":
"Na sua última Encíclica, , publicada em 2020, o Papa Francisco abordou entre outros temas uma das questões mais centrais da doutrina social católica: a destinação universal dos bens. Nos números 118 a 120 do documento, o Papa se dedica a repropor a função social da propriedade ¡ª mas, em alguns círculos, o tema caiu como se fosse uma novidade, ainda que nesse trecho Francisco citasse os Padres da Igreja, nomeadamente São João Crisóstomo e São Gregório Magno, e seus predecessores São Paulo VI e São João Paulo II. É da , do Papa polonês, que se extrai, por exemplo, uma das ideias mais relevantes a esse respeito: a afirmação de que ¡°o princípio do uso comum dos bens criados para todos é o ¡®primeiro princípio de toda a ordem ético-social¡¯, é um direito natural, primordial e prioritário¡± (FT 120).
Estamos nos dedicando nos últimos meses ao estudo de alguns pontos da , também de João Paulo II, que completou 30 anos em 2021. É um texto que apresenta um capítulo inteiro sobre a destinação universal dos bens, um princípio da doutrina social católica infelizmente bastante ignorado. Essa ignorância dá ocasião não só à instrumentalização político-ideológica da fé cristã, como também a uma grave distorção no modo como compreendemos e vivemos as implicações éticas da nossa fé.
A fé católica ensina que os bens da criação têm um destino comum, e apenas a essa luz é que é possível entender as diversas questões que emergem na vida em sociedade, entre elas o direito à propriedade privada. Como em tudo na doutrina social da Igreja, o quadro antropológico, isto é, a concepção de ser humano em que se entende a questão da propriedade não é nem o individualismo nem o coletivismo: é a noção de pessoa, isto é, a de sujeito único e irrepetível, aberto às relações, que só se realiza na vida de comunhão. É uma visão que, como já vimos, transborda a partir da própria revelação de Deus como comunhão trinitária.
Por isso, como escreveu Santo Tomás de Aquino, citado por Leão XIII na e por São João Paulo II na Centesimus annus (n. 30), ¡°o homem não deve possuir os bens externos como próprios, mas como comuns¡±. Na raiz dessa concepção está o seguinte: ¡°A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos (cf. Gn 1,28-29)¡±, ou seja, ¡°Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém¡±, escreve João Paulo II (n. 31).
A questão da propriedade individual se entrelaça com a destinação universal dos bens da criação através do tema do trabalho. É pelo trabalho que o ser humano cultiva a terra e a si mesmo, fazendo dela morada habitável para todos ¡ª casa comum. Daí o fato que o vínculo entre terra e trabalho esteja na origem de toda sociedade humana. É o trabalho o elo que liga o direito relativo à propriedade individual ao princípio absoluto da destinação universal dos bens. O trabalho, exercido em favor do bem comum, é a razão de ser da propriedade individual.
São João Paulo II explica: ¡°O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazer isso, assume como objeto e instrumento as coisas do mundo e delas se apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para os outros e com os outros: cada um colabora para o trabalho e o bem dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, da nação e, em definitivo, da humanidade inteira¡± (n. 43).
É nesse sentido que João Paulo II, procurando ler a situação do seu tempo à luz dos princípios da doutrina social da Igreja, elenca o que há de positivo no modelo de economia empresarial que se consolidava. ¡°Organizar um tal esforço produtivo, planejar a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e ¡ª enquanto parte essencial desse trabalho ¡ª das capacidades de iniciativa empresarial¡±, escreve ele (n. 32).
No entanto, isso envolve, por um lado, o cuidado das sociedades para que as pessoas tenham acesso efetivo a esse mundo de possibilidades e, por outro, o reconhecimento dos limites aos quais deve se circunscrever esse tipo de atividade. A economia de mercado precisa de controle social e estatal, porque sozinha não dá conta de tutelar e promover os valores fundamentais da pessoa, podendo se voltar contra o ser humano, reduzindo o seu trabalho e ele próprio a simples mercadoria. ¡°Há necessidades coletivas e qualitativas que não podem ser satisfeitas através dos mecanismos do mercado; existem exigências humanas importantes que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar¡±, diz João Paulo II (n. 40).
Quando a economia não está a serviço da liberdade humana integral, ¡°é correto falar de luta contra um sistema econômico¡±, diz João Paulo II (n. 35). Uma vivência autêntica da fé cristã necessariamente transborda no desejo por uma sociedade mais justa e solidária em todos os níveis ¡ª uma genuína ¡°civilização do amor¡±, como gostava de dizer São Paulo VI. ¡°É necessário, por isso, esforçar-se por construir estilos de vida nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento¡±, afirma a Centesimus annus (n. 36).
Como tudo na vida cristã, também a propriedade é algo que só se compreende e se justifica à luz de uma vida de comunhão. E nisso João Paulo II é bem enfático: ¡°A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como no agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens¡± (n. 43)."
*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e Doutorando em Teologia pela PUC-PR, professor dos cursos de especialização da Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e da Católica de Santa Catarina, em Joinville, co-fundador da Oficina de Nazaré (@oficina.de.nazare no Instagram), um projeto que fala da espiritualidade cristã nas redes sociais.
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