Buscar a justi?a, atravessar o conflito, custodiar a dignidade: o caminho da doutrina social
Pope
"Foi movido pela consciência da sua missão de sucessor de Pedro que Leão XIII se propôs falar, e a mesma consciência anima hoje o seu sucessor. Como ele, e os Pontífices anteriores e posteriores, me inspiro na imagem evangélica do «escriba instruído nas coisas do Reino dos Céus», do qual o Senhor diz que «é semelhante a um pai de família, que do seu tesouro tira coisas novas e antigas» (Mt 13, 52). O tesouro é a grande corrente da Tradição da Igreja, que contém as «coisas antigas», desde sempre recebidas e transmitidas, e que permite ler as «coisas novas», no meio das quais transcorre a vida da Igreja e do mundo".
Na Encíclica Centesimus annus - promulgada por ocasião do centenário da publicação da - o Papa João Paulo II coloca em evidência a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII, "que pertencem ao patrimônio doutrinal da Igreja, e, como tais, empenham a autoridade do seu Magistério". Mas a solicitude pastoral - acresenta o Pontífice polonês - "levou-me também a propor a análise de alguns acontecimentos da história recente".
Neste ano de 2021, a Centesimus annus completou 30 anos de sua publicação, motivo pelo qual convidamos o jovem teólogo Felipe Sérgio Koller* - co-fundador da Oficina de Nazaré (@oficina.de.nazare no Instagram) - a propor algumas reflexões sobre o pensamento social de São João Paulo II, a começar precisamente pela encíclica publicada em 1° de maio do ano de 1991. Anteriormente, Felipe deu destaque para a concepção cristã de pessoa na Doutrina Social. Hoje o também professor nos fala sobre a visão da Doutrina Social sobre a luta pela justiça social:
"Na primeira parte desta série, vimos como cada aspecto da doutrina social da Igreja se fundamenta na concepção cristã de pessoa. A pessoa vive a partir da relação; se compreende na comunhão com o outro. Quando não se dá primazia à pessoa, cai-se ou no individualismo, que entende o sujeito fora da relação, contra o outro, rivalizando com o outro; ou no coletivismo, que é capaz de esmagar o sujeito em favor de um todo idealizado. Só a partir da pessoa, a partir da comunhão, a partir da liberdade, se pode construir uma civilização do amor, para usar uma expressão de São Paulo VI. Sem atenção à pessoa, à relação, logo se escorrega para a violência.
Esse é um tema ao qual São João Paulo II também dá atenção na , que tem inspirado nossas reflexões. Quando pensamos naquilo que desejamos para a sociedade, não são apenas os objetivos que são importantes, mas também os meios de ação, o modo de alcançar esses objetivos. Talvez mais do que nos objetivos, nos ideais, é no modo que propomos alcançá-los que está o crivo da nossa sensibilidade à pessoa, da nossa acolhida do outro, da nossa abertura à comunhão.
É dentro desse quadro que a encíclica de João Paulo II volta a apontar os perigos da luta de classes como meio de ação próprio do socialismo. Mas é interessante: ele faz questão de dizer que ¡°não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social¡±. A Igreja reconhece que existem tensões entre os grupos sociais. A doutrina social compreende que essas tensões são inevitáveis ¡ª e não só: elas têm um papel positivo dentro do quadro da luta pela justiça social, e por isso o cristão é frequentemente chamado a tomar posição nesses conflitos, ¡°decidida e coerentemente¡±, como diz João Paulo II.
É um tema que o Papa havia desenvolvido em outra Encíclica, chamada e publicada em 1981, dez anos antes da Centesimus annus. Ali (n. 20) São João Paulo II dizia que a luta pela justiça social não é uma luta contra os outros: ela pode envolver a franca oposição a outros grupos e a outros interesses, mas sempre por fidelidade ao bem que é a justiça social, e não pelo fomento do ódio, da agressividade, do impulso de eliminação do outro.
Ou seja, reconhece-se a tensão, reconhece-se até mesmo o valor dessa tensão, o papel positivo do conflito, sempre à luz da busca pela justiça social. Não se pode parar a luta pela justiça social por receio das tensões. Aí entra, porém, um segundo elemento: a arte de lidar com essas tensões, ou melhor, a arte de lidar comigo mesmo diante das tensões, de custodiar o meu coração para que eu não alimente a violência, mesmo quando eu for vítima dela. É a arte de agir não por ricochete, mas com liberdade interior e um amor criativo. Há uma frase do diário de Etty Hillesum, uma mística judia morta no holocausto, que sintetiza bem essa preocupação da doutrina social católica: ¡°Esta barbárie que é a nossa, deveríamos rejeitá-la interiormente, não temos o direito de cultivar em nós esse ódio, porque não é dessa forma que o mundo supera sequer um polegar da lama em que se vê envolvido¡±.
Na Centesimus annus (n. 14), São João Paulo II deixa bem claro: ¡°O que se condena na luta de classes é principalmente a ideia de um conflito que não é limitado por considerações de caráter ético ou jurídico, que se recusa a respeitar a dignidade da pessoa no outro (e, por consequência, em si próprio), que exclui por isso um entendimento razoável, e visa não já a formulação do bem geral da sociedade inteira, mas sim o interesse de uma parte que se substitui ao bem comum e quer destruir o que se lhe opõe¡±. A recusa da dignidade do outro: aí é que soa o alarme. É aí que se desmascara uma versão falsificada de bem comum que já não é bem comum, mas o interesse meu e dos meus.
E é justamente com esses critérios que podemos manter os olhos abertos para reconhecer esse mal não apenas na luta de classes de caráter socialista, mas em qualquer outro contexto que se alimente dessas mesmas raízes: o ataque à dignidade humana no outro, o apetite pela violência, a marginalização ou eliminação daqueles que não são do meu grupo. João Paulo II reconhece que também o modelo imperialista, no âmbito das relações internacionais, é alimentado pelas mesmas motivações. ¡°Luta de classes em sentido marxista e militarismo têm, portanto, a mesma raiz: o ateísmo e o desprezo da pessoa humana, que fazem prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito¡±, escreveu o Papa (n. 14).
É muito fácil cair na tentação de, ao nos opor a algo que nos parece errado, simplesmente espelharmos o mesmo erro. Desse modo, na superfície parece que nos opomos ao erro, mas numa camada mais profunda nós, na verdade, replicamos os mesmos mecanismos desse erro, construímos sobre os mesmos fundamentos. A doutrina social da Igreja é sábia: não pretende condenar rótulos ou bandeiras, mas ir à raiz das coisas e nos convidar a uma mudança radical, que envolve colocar o nosso próprio coração à disposição de uma transformação."
*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e Doutorando em Teologia pela PUC-PR, professor dos cursos de especialização da Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e da Católica de Santa Catarina, em Joinville.
Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp