Processo relativo ao Prédio de Londres, eis os fundamentos da sentença
Pope
Uma investigação complexa, que teve o entrelaçamento de várias vertentes de investigação e um processo complexo, que se desenrolou por inteiro nas discussões (86 audiências), não poderia deixar de conclui-se com uma sentença igualmente complexa - depositada esta quarta-feira (30/10) - que apresenta as razões das decisões do Tribunal presidido por Giuseppe Pignatone, que em dezembro de 2023 condenou quase todos os réus por alguns delitos e os absolveu por outros: o cardeal Giovanni Angelo Becciu e Raffaele Mincione foram considerados culpados de peculato; Enrico Crasso pelo crime de autolavagem de dinheiro; Gianluigi Torzi e Nicola Squillace por fraude agravada e Torzi também por extorsão em conspiração com Fabrizio Tirabassi, o próprio Tirabassi por autolavagem de dinheiro. Becciu e Cecilia Marogna foram considerados culpados de fraude agravada.
Assegurações para os réus
A sentença destaca, em primeiro lugar, as muitas inovações legislativas introduzidas na legislação vaticana desde 2010 até hoje para se adequar “aos modelos internacionais e às melhores práticas”, visando a uma maior transparência interna para evitar que “delitos sejam cometidos com impunidade” por aqueles que trabalham no Estado e na Santa Sé. Em seguida, o Tribunal responde ponto a ponto às acusações de violação da Convenção Europeia de Direitos Humanos, explicando que “o sistema jurídico vaticano reconhece o princípio do devido processo legal, o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa, que são, de fato, expressamente previstos pelas normas em vigor”. O Tribunal, diz a sentença, “na convicção de que o contraditório entre as partes é o melhor método para alcançar a verdade processual e também, na medida do possível, para tentar se aproximar da verdade sem adjetivos, sempre tentou, aproveitando ao máximo os espaços deixados ao intérprete pelo quadro jurídico em vigor, adotar interpretações e práticas operacionais que garantissem a eficácia do contraditório, assegurando o mais amplo espaço para as partes e, em particular, para a Defesa”. Demonstra, ainda, a legitimidade da decisão do Promotor de Justiça de não depositar todas as mensagens de whatsapp de que dispunha por estarem ligadas a outras hipóteses penais e a outras linhas de investigação.
Esclarecimento sobre o peculato e o papel de Perlasca
Outra passagem significativa é a que esclarece a natureza do delito de peculato, que subsiste mesmo que o réu não tenha colocado dinheiro no bolso: a própria Suprema Corte italiana o identifica no caso em que o administrador público “em vez de investir para os fins a que se destinam os recursos financeiros de que dispõe, utiliza-os para adquirir, em violação da lei e do estatuto, ações de fundos especulativos”. Portanto, o fato de não haver um interesse pessoal e direto por parte de quem autorizou arriscar investir uma quantia enorme em um fundo altamente especulativo, o delito permanece. O Tribunal também definiu o monsenhor Alberto Perlasca como não confiável, definindo suas declarações de “desprovidas de autônoma relevância probatória para os fins do presente julgamento”, e baseou sua decisão “única e exclusivamente nos fatos que alcançaram a dignidade de prova”.
O investimento de 200 milhões com Mincione
Uma grande parte da sentença reconstrói em detalhes a subscrição da operação Falcon Oil e a subscrição pela Secretaria de Estado de ações dos fundos Athena Capital Commodities e Global Opportunities Fund (GOF) referentes a Raffaele Mincione com o pagamento de 200 milhões de dólares (cerca de um terço dos fundos disponíveis para a Secretaria de Estado), pelos quais o próprio Mincione, o cardeal Becciu, Crasso e Tirabassi foram condenados por peculato. O delito foi confirmado porque se verificou que havia “uma vontade de usar os bens em contraste com os interesses” da Santa Sé. “Não se pode negar - diz a fundamentação da sentença - que o uso ilícito dos bens da Igreja resultou em uma vantagem óbvia e significativa para Mincione e seus associados como consequência direta da conduta ilegal” do cardeal Becciu, “de modo que não tem relevância o fato de ele não ter tido a intenção de agir com fins lucrativos, nem de não ter obtido nenhuma vantagem”. De fato, os regulamentos em vigor exigem uma administração “prudente, voltada acima de tudo para a preservação do patrimônio, mesmo quando se busca aumentá-lo, avaliando as oportunidades de ganho mesmo que sejam medidas contra uma possível e, em qualquer caso, contida possibilidade de perda”. Portanto, era necessário levar em consideração o quociente de risco, o tamanho dos ativos investidos e a possibilidade de manter algum grau de controle de gestão, bem como os custos da operação. “À luz desses parâmetros“, o investimento no fundo gerenciado por Raffaele Mincione “certamente constitui um ’uso ilícito” dos bens públicos eclesiásticos dos quais o então substituto Becciu tinha a disponibilidade em razão de seu cargo e dos quais ele estava bem ciente da natureza e, consequentemente, dos limites legais de uso relacionados”.
O papel do substituto Becciu
Na sentença, ressalta-se que o “General Partner” Mincione não havia assumido “nenhum compromisso e não deu nenhuma garantia quanto ao retorno do investimento ou quanto ao risco de perda de todo o capital investido” e “o investidor Secretaria de Estado não tinha poder de controle”. Além disso, o Tribunal sustenta que não é verdade que esse uso imprudente do dinheiro da Santa Sé tenha sido endossado pelos dois sucessivos cardeais secretários de Estado (Tarcisio Bertone e Pietro Parolin). O cardeal Becciu, diz a sentença, reconheceu “que foi ele quem propôs a Operação Angola ao Escritório com base em seu conhecimento pregresso e amizade com o empresário Mosquito”, a operação que mais tarde se transformou em investimento no fundo de Mincione. Becciu ficou muito interessado na operação e se envolveu pessoalmente, tanto que entrou em contato direto com Crasso, algo que nunca havia acontecido antes. O próprio cardeal reconheceu que “nunca antes havia sido confiada uma quantia tão grande a uma única pessoa”. A sentença também observou que “certamente não poderia ter escapado a uma pessoa com a experiência e a capacidade reconhecidas ao então substituto Becciu” quem era Mincione, tanto pelas informações da imprensa quanto pelas informações coletadas pela Gendarmaria vaticana, que havia desaconselhado negócios com ele. “Continua sendo inexplicável que nenhum dos funcionários públicos envolvidos nesse caso grave tenha ao menos tentado, uma vez que a operação da Falcon Oil foi definitivamente encerrada, interromper o relacionamento com Mincione 'saindo' do Fundo GOF”.
A posição de Mincione
“Raffaele Mincione” - declara o Tribunal - contribuiu decisivamente, com sua conduta, para a prática do delito de peculato em exame, do qual foi, ademais, o maior beneficiário”. O financista sabia que lhe havia sido confiado dinheiro da Santa Sé e sempre se comunicou diretamente com a Secretaria de Estado e, portanto, devia saber muito bem que teria de responder por isso “de acordo com as normas do direito vaticano”. Além disso, “é difícil entender por que Raffaele Mincione, que - como um empresário prudente - foi assistido por equipes de profissionais do mais alto nível em todos os setores envolvidos na operação Falcon Oil - GOF e, em particular, por escritórios de advocacia particularmente especializados em direito inglês, direito luxemburguês e direito da União Europeia, não considerou necessário fazer o mesmo em relação aos regulamentos do Vaticano que, como ele bem sabia, regulam as atividades da Entidade (Secretaria de Estado) que lhe pagou quantias tão altas”. Portanto, o alegado desconhecimento das normativas vaticanas em vigor não é uma justificativa.
Torzi e a compra do prédio de Londres
Outra questão importante abordada pela sentença é a segunda fase da transação de Londres concluída em novembro de 2018, que envolveu a transferência por Torzi para a Secretaria de Estado de 30.000 ações (de 31.000) da GUTT, ou seja, a empresa que adquiriu o controle e, indiretamente, a propriedade do Prédio da Sloane Avenue, 60. As 1.000 ações restantes de Torzi eram, no entanto, as únicas com direito a voto e, portanto, a Secretaria de Estado, apesar da venda das ações do GOF e do desembolso de 40 milhões de libras esterlinas, não havia adquirido o controle do imóvel, que essencialmente passou de Raffaele Mincione para Gianluigi Torzi. Após uma reconstrução detalhada dos eventos e do papel concreto desempenhado por cada um dos réus, o Tribunal considerou Gianluigi Torzi e Nicola Squillace culpados pelo crime de fraude agravada. Foi demonstrado como o novo substituto Edgar Peña Parra, que havia expressado imediatamente dúvidas sobre a operação, foi enganado e sua ratificação dos acordos feitos por Perlasca e Tirabassi ocorreu porque ele foi enganado pelas garantias recebidas do advogado Squillace. Este último, além disso, “também atuou como consultor jurídico para a própria Secretaria de Estado”, convencendo “a alta administração do Dicastério de que com os acordos de Londres haviam sido alcançados os objetivos que eles próprios haviam estabelecido, ou seja, que a Secretaria de Estado era a única beneficiária econômica da GUTT e que, por meio da GUTT, tinha controle substancial do imóvel”. O que não é verdade de forma alguma. Essa fraude agravada também está vinculada ao crime de extorsão, o que o Tribunal confirma citando “uma jurisprudência consolidada da Corte de Cassação italiana desenvolvida com referência ao conceito conhecido, no jargão jurídico, como ‘cavalo de retorno’, que ocorre quando, tendo tirado um bem de seu legítimo proprietário, este recebe um pedido de dinheiro visando à devolução do mesmo bem”. Foi essa “saída ilegal que forçou a Secretaria de Estado” a efetuar para Torzi “um pagamento indevido que constitui um lucro injusto”. O Tribunal também condenou Fabrizio Tirabassi pelo crime de extorsão, considerando que ele havia contribuído decisivamente para que Torzi atingisse seu objetivo.
O dinheiro para Marogna
Outro capítulo importante diz respeito aos 600.000 euros dados a Cecilia Marogna a pedido e sob as instruções de Becciu. O objetivo era facilitar a libertação de uma irmã franciscana colombiana sequestrada na República de Mali, mas o dinheiro da Secretaria de Estado foi gasto por Marogna em hotéis, roupas, móveis e artigos de luxo. A sentença examina o caso e o divide em duas fases distintas: na primeira, Becciu e Marogna recorreram a uma agência britânica, a Inkerman, especializada em casos de sequestro e rapto, “à qual a soma total de 575.000 euros foi paga em duas parcelas, entre fevereiro e abril de 2018, pela Secretaria de Estado. Em uma segunda fase, de dezembro de 2018 a abril de 2019, uma soma do mesmo valor foi paga, por sua vez, mediante nove transferências bancárias, a uma empresa eslovena”, a LOGSIC, “criada ad hoc no dia imediatamente anterior ao primeiro pagamento, pertencente e em posse exclusiva de Cecilia Marogna. Além disso, S.E. Becciu também entregou à mulher, em setembro de 2019, quantias em dinheiro de valores menores (aproximadamente 14.000 euros)”. Em suma, enquanto os primeiros pagamentos a Inkerman “foram de fato destinados a uma entidade encarregada de realizar atividades de natureza humanitária”, os aproximadamente 600.000 euros adicionais destinados a Marogna “foram considerados desprovidos de qualquer rastreabilidade aos fins acima mencionados”, tanto que o cardeal Becciu nunca mencionou o nome de Marogna a seus superiores. A sentença reconstrói em detalhes a tentativa do cardeal de obter uma carta do Papa eximindo-o, bem como o episódio clamoroso do telefonema com o Papa assim que ele deixou o hospital onde havia sido operado, que Becciu e Maria Luisa Zambrano gravaram, compartilhando posteriormente a gravação com outras pessoas. Das mensagens que, mais tarde, acabaram num inquérito do judiciário italiano, conclui-se que o cardeal continuou “a ter relações completamente amigáveis, se não de verdadeira familiaridade” e até mesmo a se encontrar com Marogna, depois de ter “amadurecido uma consciência plena e definitiva da maneira completamente ilegítima” com a qual a mulher havia usado as somas pagas pela Secretaria de Estado à Logsic (definida na sentença como uma “caixa vazia” que “não existe”). Depreende-se das mensagens que Marogna também tinha “relações mais do que cordiais com outros parentes do imputado”. E é apontado que Becciu não apresentou uma queixa, denúncia ou exposição contra Marogna, apesar de saber como ela havia usado o dinheiro da Santa Sé.
A cooperativa do irmão
Por fim, a sentença examina o capítulo dos fundos destinados pela Secretaria de Estado à cooperativa do irmão de Becciu, Antonino, confirmando que se tratou de peculato não porque o dinheiro tenha sido usado para fins que não fossem de caridade ou tenha sido indevidamente embolsado por alguém, mas simplesmente porque tanto o artigo 176 do código penal vaticano quanto o cânon 1298 na esfera canônica estabelecem que “a menos que se trate de um assunto de suma importância, os bens eclesiásticos não devem ser vendidos ou alugados a seus administradores ou a seus parentes até o quarto grau de consanguinidade ou afinidade sem uma licença especial dada por escrito pela autoridade competente”. E a soma destinada pela Secretaria de Estado com Becciu substituto à cooperativa administrada por seus parentes foi enviada “sem qualquer autorização por escrito” da autoridade competente.
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