A dimensão performativa e paradigmática da Palavra na Liturgia
Jackson Erpen - Cidade do Vaticano
Na Exortação Apostólica pós-sinodal , Bento XVI recordava que a Palavra de Deus, para ser bem compreendida, "deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico. Com efeito - ressaltava - a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade sacramental da sua permanência: Cristo não fala no passado mas no nosso presente, tal como Ele está presente na ação litúrgica."
Com essas palavras, introduzimos a reflexão do Pe. Gerson Schmidt* intitulada: "A dimensão performativa e paradigmática da Palavra na Liturgia":
"O Dicastério para a Evangelização oferece diversos Cadernos em preparativa para a celebração do Jubileu 2025, aprofundando os temas principais da quatro Constituições Conciliares e também de cadernos sobre a Oração. Todos os cadernos, com uma linguagem acessível e prática, tem como pano de fundo o tema central do Jubileu: “Peregrinos da Esperança”.
O sétimo volume da Coleção trata da “Sagrada Escritura na Liturgia” e é de autoria do Pe. Maurizio Compiani, biblista italiano. O segundo capítulo desse caderno tem como título o pensamento da : “Fomentar aquele amor suave e forte pela Sagrada Escritura” (SC,24). Ressoa de modo imponente a afirmação inicial da Sacrosanctum Concilium que diz: “É de suma importância a Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas”. E quando falamos de celebração litúrgica, não estamos apenas falando de Missa, mas de toda e qualquer ação litúrgica: a celebração da Palavra, as Exéquias, a liturgia das Horas, os encontros de novenas em preparação ao Natal e Páscoa, os encontros e ritos catequéticos, a oração do terço que essencialmente também é bíblica. Pensar em Liturgia é muito mais ampla que pensar somente na celebração da missa. A liturgia, como um todo, é cume e ápice de toda a ação eclesial. É a fonte donde jorra inúmeros dons e graças que emana de todas as celebrações eclesiais. E Pe. Maurizio aponta que “a íntima conexão entre a Liturgia e Sagrada Escritura pertence ao DNA da fé bíblica judaico-cristã, pois é uma característica própria de seu evento fundador: a Páscoa”[1]. Na caminhada do Povo de Israel, Palavra e Liturgia não se separam. Na verdade, todo o escrito sagrado foi precedido pela experiência vivida de Deus e pela expressão litúrgica dela. A Palavra foi expressa através de acontecimentos: por meio de ágapes, celebrações litúrgicas, por meio de cantos, por meio de encontros comunitários, por desejos de ação de graças, por meio de celebração do perdão, como era o Dia do Yon kippur – Dia do perdão judaico.
Escreve assim o autor nesse caderno intitulado - Sagrada Escritura na Liturgia: “Segundo a Sacrosanctum Concilium, o papel altamente relevante que a Sagrada Escritura exerce na liturgia deve levar o fiel a experimentar o ‘gosto vivo e saboroso’. A expressão indica que o encontro com a Palavra não se caracteriza como momento meramente intelectual ou cultural a partir de técnicas científicas e rígidas, nem entendido como mero dever a ser cumprido de forma esporádica e precipitada”[2]. O que se realiza na liturgia é uma escuta profundamente “espiritual” – aponta o biblista italiano – “porque o Espírito que age na Palavra proclamada e nos Sacramentos celebrados, vivifica também a própria Igreja ali reunida, suscitando Ministérios, carismas e pessoas, concedendo dons a cada um em vista da edificação comum. Renova-se, assim, o prodígio de Pentecostes: O Espírito torna-se ‘línguas de fogo’, ou seja, torna-se Palavra ardente, que entra pessoalmente em cada homem, conforme o Espírito concedia expressar-se (At 2,4). (...) Por meio da palavra, o Espírito não fala à Assembleia de modo genérico, frio e impessoal. Ao contrário, penetra na intimidade de cada um, tornando-se familiar: quando a Palavra é acolhida, o Espírito faz com que cada um se sinta em casa com Ele, à sua mesa, permitindo saborear as maravilhas de Deus”[3].
Há na liturgia, quando a Palavra de Deus é proclamada um “gosto vivo” e “gosto saboroso”, subtítulos usados pelo autor Pe. Maurizio. A mesa da Palavra tem um sabor especial, um gosto maravilhoso como alimento salutar para nosso sustento. Diz assim o aprofundamento desse subsídio: “A força viva da Palavra de Deus se manifesta em pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, a palavra é performativa: fica a ser capaz de realizar o que diz. Podemos pensar no relato da Criação em que tudo passa a existir em total correspondência à Palavra pronunciada por Deus: Deus disse ‘Haja a luz’ e ‘houve luz’ (Gn 1,3). É o que acontece nos Sacramentos, mas é também o que a assembleia litúrgica reconhece como realizado em sua própria experiência da fé. A história de cada fiel e de cada comunidade, de fato, é uma trama de graça em que se entrelaçam Palavra, Espírito, disponibilidade, testemunho fiel. A Palavra de Deus também tem função paradigmática, do verbo grego que significa mostrar, apresentar, comparar. Em outras palavras, revela o esquema fundamental do agir de Deus, esquema esse que se associa com a existência pessoal de cada um e da comunidade”[4]. Portanto, duas dimensões da Palavra proclamada na assembleia litúrgica: performativa - formando o fiel no que promete realizar e paradigmática – de apresentar e revelar a vontade de Deus para nossas vidas concretas. “Com os pés firmes no cotidiano, por meio de uma análise honesta e fiel do texto, seguindo os passos daqueles que nos precederam no testemunho da fé, acolhe-se o paradigma que a Palavra nos transmite em um ato de oração e confiança. É desse modo que a fé se ilumina com luz viva, permitindo ao fiel e a toda a comunidade discernir a realidade na luz de Deus e caminhar na história. A repetição contínua de tal experiência desprende uma forma extraordinária, porque torna a Igreja de todos os tempos consciente de estar na obra de Deus e de ser uma declinação da Palavra proclamada pela Liturgia”."
*Padre Gerson Schmidt foi ordenado em 2 de janeiro de 1993, em Estrela (RS). Além da Filosofia e Teologia, também é graduado em Jornalismo e é Mestre em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS.
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[1] CAMPIANI, Maurízio. A Sagrada Escritura na Liturgia – Cadernos do concílio 7, Ed. CNBB, p. 11.
[2] Idem, p.23.
[3] Idem,23-24.
[4] Idem, 24.
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