B¨ºn??o de casais "irregulares", Betori: o amor de Deus ¨¦ uma experi¨ºncia para todos
Pope
O debate que se abriu na comunidade eclesial, bem como na mídia, em torno da Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé Fiducia supplicans sobre o significado pastoral das bênçãos corre o risco de colocar os defensores da reta doutrina e os defensores das exigências pastorais em dois lados opostos, como se a doutrina e a pastoral pudessem ser separadas e até mesmo opostas. Esquece-se, assim, a lição fundamental do santo Papa João XXIII que, ao abrir o Concílio Vaticano II, teve o cuidado de advertir que a índole pastoral não era rumo à qual curvar a doutrina, uma vez que a dimensão pastoral é um fator constitutivo da verdade cristã que brota não de uma revelação da verdade em si mesma, mas da vontade divina de comunicar o mistério "propter nostram salutem".
Vale a pena reler as palavras do santo Papa no centro do discurso inaugural do Concílio: "É necessário que esta doutrina certa e imutável, à qual se deve dar fiel assentimento, seja aprofundada e exposta como exigem os nossos tempos. Pois uma coisa é o depósito da fé, ou seja, as verdades contidas em nossa veneranda doutrina, e outra é a maneira pela qual elas são proclamadas, mas sempre no mesmo sentido e no mesmo significado. (...) Ou seja, deve-se adotar aquela forma de exposição que mais corresponde ao Magistério, cuja índole é predominantemente pastoral" (Gaudet Mater Ecclesia, 5). Pensar na verdade e em sua proclamação nesses termos não tira nada de sua integridade, mas nos torna conscientes da estreita conexão entre a vontade salvífica de Deus e a condição histórica do homem. Toda verdade, para ser proclamada, precisa estar concretamente situada na vida e, portanto, também em suas ambiguidades.
É a experiência de todo pároco, mas também de todo bispo, ser abordado por pessoas que pedem uma bênção para si ou para um ente querido. Eles são solicitados a interceder para que Deus se volte com um olhar misericordioso para uma situação particular de sofrimento, mas também, de modo mais geral, para a condição de fragilidade que caracteriza a existência humana. Nenhum sacerdote negará oferecer um sinal da paternidade amorosa de Deus em relação a cada uma de suas criaturas, nem perguntará ou se perguntará sobre a condição do suplicante em relação a Deus, se está ou não em uma situação de pecado ou qual é a sua relação com a fé cristã. Mesmo os não-crentes ou os crentes de outras religiões podem pedir a um ministro da Igreja que os abençoe: isso também acontece na vida concreta de um padre ou bispo. Deve-se responder com uma negação ou, ao contrário, deve-se reconhecer nesse pedido uma abertura para Deus, aquele Deus que - como Jesus nos ensinou - "faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos" (Mt 5,45)? O amor de Deus é infinito, não discrimina, "não rejeita ninguém que se aproxime humildemente pedindo ajuda" (Declaração, 33).
É dentro desse horizonte mais amplo da missão de um ministro de Deus que acredito que a proposta - a ser avaliada caso a caso, como indicado - da Declaração do Dicastério deva ser acolhida, para que mesmo aqueles que se encontram em uma situação de vida objetivamente em desacordo com a moral cristã não deixem de ter um gesto que diga que ninguém é esquecido por Deus e que seu amor de Pai não exclui ninguém e, quando se manifesta, torna-se também um chamado à fidelidade à sua Palavra. A Declaração é muito clara ao afirmar que uma bênção não é um ato que sanciona a bondade de uma situação de vida, nem mesmo a legitima. Ela também faz isso colocando essa bênção fora de qualquer forma litúrgica, não fornecendo nenhum ritual para bênçãos de casais em situação irregular ou do mesmo sexo. E o faz, sobretudo, reafirmando que é necessário evitar "criar confusão entre o que é constitutivo do matrimônio, como 'união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta a gerar filhos', e o que o contradiz" (Declaração, 4).
Voltando ao horizonte aberto por João XXIII, não se trata de uma expansão do conceito de matrimônio, mas de uma aplicação concreta da convicção de fé de que o amor de Deus não tem fronteiras e que é precisamente a sua ação que está na base da superação das situações difíceis em que o homem se encontra. As bênçãos - como a Declaração deixa explícito - são "um recurso pastoral e não um risco ou um problema" (Declaração, 23), um gesto que "não pretende sancionar ou legitimar nada", no qual "as pessoas podem experimentar a proximidade do Pai 'para além de todo desejo e todo mérito'" (Declaração, 34). Uma referência ao comportamento de Jesus, conforme testemunhado nos Evangelhos, pode ser útil para iluminar o significado dessa proposta de bênção pastoral. Quando Jesus se depara com uma condição de pecado e exerce seu poder de perdão, essa concessão normalmente está ligada a um apelo à conversão. Mas quando ele é chamado a intervir em situações de fragilidade humana, de sofrimento físico e espiritual, ele não exige que a pessoa que se dirige a ele esteja em uma condição de perfeição moral, mas chama a ela ou aos espectadores à fé.
Parece-me que a bênção de casais em situação irregular e de casais do mesmo sexo deve ser colocada dentro desse horizonte, como um pedido de ajuda para as condições de fragilidade que marcam a vida de todos, razão pela qual não é por acaso que a Declaração atribui seu efeito às "graças atuais". Significativa a esse respeito é a conclusão da Declaração, que retoma as palavras do Papa Francisco: "'Esta é a raiz da mansidão cristã, a capacidade de sentir-se abençoado e a capacidade de abençoar (...). O Pai nos ama, e tudo o que nos resta é a alegria de bendizê-Lo e a alegria de agradecê-Lo, e de aprender com Ele a abençoar'. Dessa forma, cada irmão e irmã poderá sentir na Igreja que é sempre peregrino, sempre mendicante, sempre amado e, apesar de tudo, sempre abençoado" (Declaração, 45). Diante da missão de mostrar que o amor de Deus alcança a todos, é precisamente o fato de experimentar esse amor que pode nos levar a perguntar como responder a ele com fidelidade à sua vontade.
Cardeal arcebispo de Florença
Fonte: Avvenire, diário da Conferência Episcopal Italiana (CEI)
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