Anunciamos, Senhor, a vossa morte!
Há dois mil anos, a Igreja anuncia e celebra, neste dia, a morte do Filho de Deus na cruz. A cada Missa, após a consagração, ela proclama: ¡°Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!¡±.
Uma outra morte de Deus, porém, é proclamada há um século e meio, e hoje, em nosso mundo ocidental descristianizado. Quando, no âmbito da cultura, fala-se da ¡°morte de Deus¡±, é esta outra morte de Deus ¨C ideológica, não histórica ¨C que se entende. Alguns teólogos, para não permanecer atrás em relação aos tempos, apressam-se em construir sobre ela uma teologia: ¡°A teologia da morte de Deus¡±.
Não podemos fingir ignorar a existência desta narrativa diversa, sem deixar desconfiados tantos fiéis. Esta morte diversa de Deus encontrou a sua perfeita expressão no conhecido anúncio que Nietzsche põe na boca do ¡°homem louco¡±, que chega sem fôlego à praça da cidade:
Para onde foi Deus? ¨C exclamou ¨C É o que vou dizer. Nós o matamos ¨C vocês e eu!... nunca houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que o foi alguma vez toda essa história[1].
Na lógica destas palavras ¨C e, creio eu, nas expectativas de seu autor ¨C, estava o fato de que, depois dele, a história não seria mais dividida em antes de Cristo e depois de Cristo, mas antes de Nietzsche e depois de Nietzsche. Aparentemente, não é o nada que é colocado no lugar de Deus, mas o homem, e, mais precisamente, o ¡°super-homem¡±, o ¡°além-homem¡±. Deste novo homem, deve-se exclamar então ¨C com um sentimento de satisfação e orgulho, não mais de compaixão: ¡°Ecce homo!¡±: Eis o verdadeiro homem![2]. Não demorará, contudo, a se dar conta de que, ao ficar só, o homem não é nada.
Que fizemos quando desprendemos esta terra da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? Não estaremos errando como num nada infinito?
A resposta tácita e reconfortante do ¡°homem louco¡± a estas perguntas é: ¡°Não, não erraremos em um nada infinito, porque o homem desempenhará, ele mesmo, a tarefa até agora designada a Deus!¡±. A nossa resposta de crentes, ao contrário, é: ¡°Sim, e é exatamente o que aconteceu e o que está acontecendo! Estamos errando como num nada infinito¡±. É significativo que, justamente no rastro do autor daquele anúncio, chegou-se a definir a existência humana um ¡°ser-para-a-morte¡± e a considerar todas as supostas possibilidades do homem como ¡°nulidade em partida¡±[3]. ¡°Além do bem e do mal¡±, foi um outro grito de guerra do filósofo![4]; mas além do bem e do mal, há apenas ¡°a vontade de potência¡±, e nós sabemos aonde ela conduz...
Não nos é lícito julgar o coração de um homem que somente Deus conhece. Também o autor daquele anúncio teve a sua parte de sofrimento na vida, e o sofrimento une a Cristo talvez mais do que as invectivas separem dele. A oração de Jesus na cruz: ¡°Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!¡± (Lc 23,34), não foi pronunciada apenas por aqueles que estavam presentes naquele dia no Calvário!
Volta-me à mente uma imagem que, às vezes, tenho observado ao vivo (e que espero que tenha se tornado uma realidade, no meio-tempo, para o autor daquele anúncio!): uma criança, furiosa, tenta golpear o próprio pai com socos e arranhões no rosto, até que, esgotadas as forças, cai chorando nos braços daquele que o acalma e o aperta ao peito.
Não julgamos, repito, a pessoa, que só Deus conhece. A consequência, porém, que aquele seu anúncio teve, aquela sim, podemos e devemos julgar. Ela foi declinada nos modos e com os mais diversos nomes, até se tornar uma moda, uma atmosfera que se respira nos ambientes intelectuais do Ocidente ¡°pós-moderno¡±. O denominador comum a todas estas diversas declinações é o total relativismo em todo campo: ética, linguagem, filosofia, arte e, naturalmente, religião. Nada mais é sólido; tudo é líquido, ou mesmo vaporoso. Na época do romantismo, deleitava-se na melancolia, hoje, no niilismo.
Como crentes, é nosso dever mostrar o que está por trás ou sob aquele anúncio, isto é, a trepidação de uma antiga chama, a erupção repentina de um vulcão jamais extinto desde o início do mundo. O drama humano teve, também ele, o seu ¡°prólogo no céu¡±, naquele ¡°espírito da negação¡± que não aceitou existir na graça de um outro. Desde então, ele não faz outra coisa senão recrutar apoiadores da sua causa, primeiros dos quais, os ingênuos Adão e Eva: ¡°Sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal!¡± (Gênesis 3,5).
Para o homem moderno, tudo isso não parece mais do que um mito etiológico para explicar o mal do mundo. E ¨C no sentido positivo que hoje se dá ao mito ¨C assim ele é na realidade! Mas a história, a literatura e a nossa própria experiência pessoal nos dizem que, por trás deste ¡°mito¡±, há uma verdade transcendente que nenhuma narrativa histórica ou raciocínio filosófico poderia nos transmitir.
Deus conhece nosso orgulho e veio ao nosso encontro, aniquilando-se, ele primeiro, diante de nossos olhos. Cristo Jesus,
existindo em forma divina,
não considerou um privilégio um privilégio ser igual a Deus,
mas esvaziou-se,
assumindo a forma de servo
e tornando-se semelhante ao ser humano.
E encontrado em aspecto humano,
humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte ¨C
e morte de cruz!
¡°¶Ù±ð³Ü²õ? Nós o matamos ¨C vocês e eu!¡±: Esta coisa tremenda se realizou, de fato, uma vez na história humana, mas em sentido bem diferente daquele bradado pelo ¡°homem louco¡±. Porque é verdade, irmãos e irmãs: fomos nós - vocês e eu - que matamos Jesus de Nazaré! Ele morreu pelos nossos pecados e também pelos de todo o mundo (1Jo 2,2). Mas a sua ressurreição assegura-nos que este caminho não conduz à derrota, mas, graças ao nosso arrependimento, conduz àquela "apoteose da vida", em vão buscada em outros lugares.
Por que falar disto em uma liturgia da Sexta-feira Santa? Não para convencer os ateus de que Deus não está morto! Os mais celebres dentre eles descobriram-no por conta própria, no momento em que fecharam os olhos à luz ¨C antes, às trevas ¨C deste mundo. Quanto àqueles dentre eles que ainda estão em vida, para convencê-los são necessários outros meios, mais do que as palavras de um velho pregador. Meios que o Senhor não deixará faltar a quem tem o coração aberto à verdade, como pediremos a Deus na Oração Universal a seguir.
Não, o verdadeiro objetivo é preservar os crentes ¨C quem sabe, talvez apenas alguns estudantes universitários ¨C de serem atraídos para dentro deste vórtice do niilismo, que é o verdadeiro ¡°buraco negro¡± do universo espiritual; fazer ressoar entre nós a admoestação sempre atual do nosso Dante Alighieri:
A razões, pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos! Não sede pluma a qualquer vento!
As nódoas com toda a água se não tiram[5].
Continuemos, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs, a repetir, mais convictos do que nunca, as palavras que proclamamos a cada Missa:
Anunciamos, Senhor, a vossa morte
e proclamamos a vossa ressurreição.
Vinde, Senhor Jesus!
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Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap
[1] Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, n. 125.
[2] Cf. Friedrich Nietzsche, Ecce homo, 1888.
[3] Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, seção II, cap. 2-3.
[4] Cf. F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, Lipsia 1886.
[5] Cf. Paraíso, V, 73-75.
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