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Celebra??o da Paix?o do Senhor na Bas¨ªlica de S?o Pedro, em 15/04/2022 Celebra??o da Paix?o do Senhor na Bas¨ªlica de S?o Pedro, em 15/04/2022 

Cardeal Cantalamessa - Prega??o da Sexta-feira Santa de 2022

"Os eventos improvisamente nos recordaram uma coisa. As disposi??es do mundo mudam de um dia para o outro. Tudo passa, tudo envelhece; tudo ? n?o somente ¡°a feliz juventude¡± ? desvanece. H¨¢ um s¨® modo de se subtrair ¨¤ corrente do tempo, que arrasta tudo atr¨¢s de si: passar ao que n?o passa! P?r os p¨¦s em terra firme! P¨¢scoa significa passagem: este ano, fa?amos todos uma verdadeira P¨¢scoa...passemos ?quele que n?o passa. Passemos agora com o cora??o, antes de passar um dia com o corpo!"

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

¡°PILATOS LHE DISSE: O QUE É A VERDADE?¡±

Pregação da Sexta-feira Santa de 2022

Na narrativa da Paixão, o evangelista João dá uma particular importância ao diálogo de Jesus com Pilatos, e é sobre ele que queremos refletir por alguns minutos, antes de prosseguir com a nossa liturgia.

Tudo começa com a pergunta de Pilatos: ¡°Tu és o Rei dos Judeus?¡± (Jo 18,33). Jesus quer fazer Pilatos entender que a pergunta é mais séria do que ele pensa, mas que tem um significado apenas se não repetir simplesmente uma acusação de outros. Por isso, pergunta, por sua vez: ¡°Dizes isso por ti mesmo ou outros te disseram isso de mim?¡±.

Ele procura conduzir Pilatos a uma visão superior. Fala do seu reino: um reino que ¡°não é deste mundo¡±. O Procurador entende apenas uma coisa: que não se trata de um reino político. Se se quer falar de religião, ele não quer entrar neste gênero de questões. Por isso, pergunta com evidente ironia: ¡°Então, tu és rei?¡±. ¡°Jesus respondeu: ¡®Tu dizes, que eu sou rei¡¯¡± (Jo 18,37).

Declarando ser rei, Jesus se expõe à morte; mas, ao invés de se desculpar negando, afirma-o com força. Deixa fluir a sua origem superior: ¡°Vim ao mundo...¡±: portanto, misteriosamente existia antes da vida terrena, vem de um outro mundo. Ele veio à terra para ser testemunha da verdade. Trata Pilatos como uma alma que necessita de luz e de verdade e não como um juiz. Ele se interessa pelo destino do homem Pilatos, mais do que o seu próprio. Com o seu apelo para receber a verdade, quer induzi-lo a retornar a si mesmo, a olhas as coisas com olhar diverso, a se colocar acima da contenda momentânea com os judeus.

O Procurador romano capta o convite que Jesus lhe dirige, mas, sobre este gênero de especulações, é cético e indiferente. O mistério que vislumbra nas palavras de Jesus lhe causa medo e ele prefere terminar o diálogo. Por isso, murmura consigo, dando de ombros: ¡°O que é a verdade?¡±, e deixa o Pretório.

*    *    *

Como é atual esta página do Evangelho! Também hoje, como no passado, o homem não deixa de se perguntar: ¡°O que é a verdade?¡±. Mas, como Pilatos, volta distraidamente as costas àquele que disse: ¡°Vim ao mundo para dar testemunho da verdade¡± e ¡°Eu sou a Verdade!¡± (Jo 14,6).

Pela internet, tenho acompanhado inúmeros debates sobre religião e ciência, sobre fé e ateísmo. Uma coisa chamou minh atenção: horas e horas de diálogo, sem que jamais fosse mencionado o nome de Jesus. E caso a parte crente ousasse mencioná-lo e alegar o fato da sua ressurreição dos mortos, imediatamente se tentava encerrar o discurso como não pertinente ao tema. Tudo acontece ¡°etsi Christus non daretur¡±: como se no mundo jamais tivesse existido um homem chamado Jesus Cristo.

Qual é o resultado disso? A palavra ¡°Deus¡± se tornar um recipiente vazio que cada um pode preencher ao seu bel-prazer. Mas, justamente por isso, Deus se preocupou em dar ele mesmo um conteúdo ao seu nome: ¡°O Verbo se fez carne¡±. A Verdade se fez carne! Por isso, o extenuante esforço de deixar Jesus fora do discurso sobre Deus: ele tira do orgulho humano todo pretexto para decidir por si o que é Deus!

¡°Ah, certo: Jesus de Nazaré!¡±, objeta-se. ¡°Mas há quem duvide até mesmo que tenha existido!¡±. Um conhecido escritor inglês do século passado ? conhecido pelo grande público por ser o autor do ciclo de romances e de filmes ¡°O Senhor dos anéis¡±, John Ronald Tolkien ? em uma carta, dava esta resposta a seu filho, que lhe apresentava a mesma objeção:

É necessária uma extraordinária vontade de não crer para supor que Jesus jamais tenha existido ou que ele não tenha pronunciado as palavras a ele atribuídas, tanto que elas são impossíveis de serem inventadas por nenhum outro ser no mundo: ¡°Antes que Abraão existisse, eu sou¡± (Jo 8,58); e ¡°Quem me viu, viu o Pai (Jo 14,9)[1].

A única alternativa à verdade do Cristo, acrescentava o escritor, é que se trate de ¡°um caso de megalomania demente e de uma fraude gigantesca¡±. Poderia, contudo, um caso do gênero, aguentar por vinte séculos de implacável crítica histórica e filosófica e produzir os frutos que tem produzido?

A celebração da Paixão do Senhor na Basílica de São Pedro

Hoje se vai além do ceticismo de Pilatos. Há quem pense que não se deva nem mesmo pôr a pergunta ¡°O que é a verdade?¡±, porque a verdade, simplesmente, não existe! ¡°Tudo é relativo, nada é certo! Pensar diversamente é presunção intolerável!¡±. Não há mais espaço para ¡°as grandes narrativas sobre o mundo e sobre a realidade¡±, inclusive sobre Deus e sobre Cristo.

Irmãos e irmãs ateus, agnósticos ou ainda em busca (caso haja alguém na escuta): não é um pobre pregador como eu que pronunciou as palavras que agora estou prestes a vos dizer. É alguém que muitos dentre vós admiram, do qual escrevem e do qual, talvez, consideram-se também discípulos e continuadores: Søeren Kierkegaard, o iniciador da corrente filosófica do Existencialismo:

Fala-se tanto ¨C afirma ele ? de misérias humanas; fala-se tanto de vidas desperdiçadas. Mas desperdiçada é somente a vida daquele homem que jamais se deu conta, porque jamais teve, no sentido mais profundo, a impressão de que exista um Deus e que ele ¨Cjustamente ele, o seu eu ¨C esteja diante desse Deus[2].

Afirma-se: há muita injustiça e muito sofrimento no mundo para se crer em Deus! É verdade, mas pensemos em quanto mais absurdo e motivo de desespero se torna o mal que nos circunda, sem a fé em um triunfo final da verdade e do bem. A Ressurreição de Jesus dos mortos, que celebraremos em dois dias, é a promessa e a garantia de que haverá aquele triunfo, porque já iniciou com ele.

Se eu tivesse a coragem do apóstolo Paulo, eu também deveria gritar: ¡°Eu vos suplico: deixai-vos reconciliar com Deus!¡± (2Cor 5,20). Não ¡°desperdiceis¡± também vós a vida! Não deixeis este mundo como Pilatos deixou o Pretório, com aquela pergunta no ar: ¡°O que é a verdade?¡±. É muito importante. Trata-se de saber se temos vivido por algo, ou em vão.

*     *      *

O diálogo de Jesus com Pilatos oferece, porém, a ocasião também para uma outra reflexão, voltada, desta vez, para nós, fiéis e homens de Igreja, não aos de fora. ¡°Teu povo e os chefes dos sacerdotes te entregaram a mim!¡±: Gens tua et pontifices tradiderunt te mihi (Jo 18,35). Os homens da tua Igreja, os teus sacerdotes te abandonaram; desqualificaram o teu nome com perversidades horrendas! E nós ainda deveríamos acreditar em ti? Também a esta terrível objeção, eu gostaria de responder com as palavras que o mesmo escritor mencionado escrevia ao filho:

O nosso amor poderá ser esfriado e a nossa vontade lesionada pelo espetáculo das deficiências, da loucura e dos pecados da Igreja e dos seus ministros, mas não creio que quem, uma vez, acreditou de verdade, abandone a fé por estas razões, menos de todos os que têm algum conhecimento da história... Isso é cômodo porque nos leva a desviar o olhar de nós mesmos e das nossas culpas e achar um bode expiatório... Penso que sou sensível aos escândalos, assim como tu o és e qualquer outro cristão. Tenho sofrido muito em minha vida por causa de padres incultos, cansados, fracos e, às vezes, também maus¡±.

Um resultado do gênero era, no mais, de se esperar. Começou antes da Páscoa, com a traição de Judas, a negação de Simão Pedro, a fuga dos apóstolos... Chorar, então? Sim ¨C recomendava Tolkien ao filho ? mas por Jesus ? pelo que ele deve suportar ?, antes do que por nós. Chorar ¨Cacrescentamos hoje ¨C com as vítimas e pelas vítimas dos nossos pecados.

*    *    *

Uma conclusão para todos, crentes e não crentes. Este ano, celebramos a Páscoa não ao som de sinos, mas com o barulho nos ouvidos de bombas e explosões não distante daqui. Recordemos o que Jesus respondeu um dia à notícia do sangue dos galileus que Pilatos havia misturado ao dos sacrifícios, e da queda da torre de Siloé: ¡°Se não vos arrependerdes, porém, perecereis todos do mesmo modo¡± (Lc 13,5). Se não mudardes as vossas lanças em foices, as vossas espadas em arados (Is 2,4) e os vossos mísseis em fábricas e casas, perecereis todos do mesmo modo!

Os eventos improvisamente nos recordaram uma coisa. As disposições do mundo mudam de um dia para o outro. Tudo passa, tudo envelhece; tudo ? não somente ¡°a feliz juventude¡± ? desvanece. Há um só modo de se subtrair à corrente do tempo, que arrasta tudo atrás de si: passar ao que não passa! Pôr os pés em terra firme! Páscoa significa passagem: este ano, façamos todos uma verdadeira Páscoa, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs: passemos Àquele que não passa. Passemos agora com o coração, antes de passar um dia com o corpo!

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Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. From the Letters of J.R.R. Tolkien, ed. Humphrey Carpenter, with Christopher Tolkien, Houghton Mifflin 1981 (trad. Ital., ,  ).

[2] Cf. Søeren Kierkegaard, La malattia mortale, II, in Opere, a cura di C. Fabro, Firenze 1972, p. 633.

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15 abril 2022, 18:07