Processo vaticano, Becciu: o que fiz na Sardenha foi caridade, não sou corrupto
Salvatore Cernuzio – Pope
"Nunca quis que um euro, ou melhor, um centavo, do qual tive administração e conhecimento, fosse desviado, mal utilizado ou destinado a propósitos que não fossem exclusivamente institucionais. Sempre agi para o bem da Sé Apostólica e de toda a Igreja." Sentado em um dos assentos da Sala multifuncional dos Museus do Vaticano, onde se realizou a décima audiência no julgamento no Vaticano por presumíveis atos ilícitos praticados com fundos da Secretaria de Estado, o cardeal Angelo Becciu ofereceu esta quinta-feira, 17 de março, ao Tribunal vaticano suas declarações espontâneas sobre o "caso da Sardenha". Ou seja, o caso das três transferências enviadas, entre 2013 e 2018, à Diocese de Ozieri em favor de uma conta (1000/60478) somente formalmente em nome da Diocese, segundo os Promotores de Justiça, e ao invés disso à plena disposição da cooperativa Spes e de seu irmão Tonino, único administrador. Uma conta "usada para fins inteiramente privados", dizem os Promotores, que acusam Becciu de peculato.
As declarações de Becciu
O cardeal reiterou "de cabeça erguida" sua inocência. Primeiro, porém, ele quis denunciar o "massacre sem precedentes na mídia" que sofreu através de "uma campanha violenta e vulgar": "Fui apresentado como o pior dos cardeais. Fui descrito como corrupto, ávido por dinheiro, desleal com o Papa, preocupado com o bem-estar da família. Insinuaram infâmias sobre a integridade da minha vida sacerdotal, ter financiado testemunhas para um processo contra um irmão, ser o dono de poços de petróleo". "Grotescas e monstruosas acusações" feitas por alguém que tentou "me demonizar e destruir", disse o ex-substituto da Secretaria de Estado, que reiterou sua confiança no "julgamento imparcial" da Corte, apesar do "clamor da mídia".
O interrogatório
O Promotor de Justiça adjunto, Alessandro Diddi, devido a alguns problemas em seu escritório (incluindo a infecção Covid de boa parte dos membros também da secretaria) comunicou que não poderia fazer o interrogatório. Por sua vez, o presidente do Tribunal vaticano, Giuseppe Pignatone, fez "três perguntas", a primeira sobre o caso da gerente sarda Cecilia Marogna e sobre o segredo pontifício que ela opôs à Secretaria de Estado, mas também à Otan e ao Estado italiano. Ainda é válido ou não? "Tendo a confirmar o segredo, mas estou disposto a aceitar o que será decidido pelas autoridades", disse Becciu.
O "caso da Sardenha"
Pignatone listou então as "contribuições" feitas pelo cardeal à Igreja de Ozieri: em 2013, uma transferência de 100 mil euros de uma conta pessoal; em 2015, outros 25 mil euros; em 2018, outros 100 mil euros. Para a acusação, as duas últimas somas faziam parte dos fundos da Secretaria de Estado. A primeira transferência tinha sido enviada para uma conta que tinha uma indicação "estranha" no título: "Caritas Ozieri, na Cooperativa Spes". "Foi um empréstimo ou uma transferência a fundo perdido?" perguntou o presidente do Tribunal. Becciu explicou que se tratava de um empréstimo para um projeto que "deveria dar emprego a jovens e pessoas socialmente desfavorecidas". Metade do empréstimo foi restituído, a outra metade doada pelo purpurado.
Pignatone lembrou então a base da acusação contra ele, a saber, que ele havia desviado uma soma de 125 mil euros da Secretaria de Estado para transferi-los, "em desrespeito" às normas do Direito Canônico e às instruções administrativas específicas, à cooperativa "que os administrava com uma série de atividades comerciais". "Com relação a estas alegações de irregularidade formal que também podem assumir um valor substancial, do que o senhor estava ciente?" Becciu explicou em detalhes o procedimento para o fornecimento de financiamento pela Secretaria de Estado: um pedido inicial de "pessoas dignas de confiança", a eventual avaliação, o envio de fundos e o pedido de um relatório ao final da gestão.
O mesmo procedimento foi seguido para os 25 mil euros à Caritas de Ozieri: "O pedido me foi feito pelo bispo, então administrador apostólico Sebastiano Sanguinetti, para montar uma padaria que deveria dar trabalho para várias pessoas". Um incêndio destruiu tudo, mas outros recursos foram recuperados. Faltava apenas uma máquina, então Sanguinetti pediu ajuda ao cardeal: "Quando cheguei a Roma, vi que havia dinheiro disponível". O bispo disse a Becciu para enviar o montante para a mesma conta na qual os 100 mil euros haviam sido transferidos anteriormente. "Como substituto, não entro na administração da diocese. Há um Dicastério, a Congregação para os Bispos, que se ocupa disso e intervém se vê fumus de desordem. Eles me pediram para fazer esta oferta, eu vi a beleza da obra e enviei 25 mil euros, que depois foram usados para comprar um panificador". Para o cardeal se tratou de um gesto de "caridade", a mesma caridade que – disse ele, citando um discurso do Papa - não consiste apenas em dar uma esmola ocasional, mas em restaurar a dignidade do homem através do trabalho. Em seguida, o cardeal confirmou que sabia que o destinatário final do dinheiro era a cooperativa Spes na qualidade de "braço direito" da Caritas.
Quanto à última transferência em 2018 (outros 100 mil euros), Becciu explicou que a fez depois que o novo bispo de Ozieri, Corrado Melis, lhe contou sobre o projeto de uma Cidadela da Caridade para acolher e apoiar os pobres e idosos. O orçamento era de quase um milhão e meio e o bispo estava à procura de fundos. Ele pediu ajuda à Secretaria de Estado. Becciu o concedeu, visto que "todos os anos uma quantidade de subsídios era distribuída a vários organismos na Itália e no exterior". Aqueles 100 mil euros ainda estão na conta no momento. Por quê? 'Não sei como eles organizam, o bispo sempre me disse que eles estão esperando para receber a quantia total'. Os trabalhos para a Cidadela começaram em 28 de fevereiro passado.
Os defensores tomam a palavra
Os advogados de defesa então tomaram a palavra. O primeiro a falar foi o advogado Cataldo Intrieri, advogado de Fabrizio Tirabassi, ex-funcionário da Secretaria de Estado, que solicitou perícias sobre as gravações em áudio-vídeo dos interrogatórios de monsenhor Alberto Perlasca e sobre as cópias forenses do material eletrônico. Ele também reiterou seu pedido de devolução do material apreendido, já que os documentos também contêm imagens de membros da família de Tirabassi, tais como fotos de sua filha brincando no jardim.
O advogado do corretor Gianluigi Torzi, Marco Franco, objetou a invalidade da apreensão a que Torzi foi submetido por ocasião do mandado de prisão de junho de 2020 (todo o material já foi devolvido). Ele então declarou a disponibilidade de seu cliente ao interrogatório, mas por videoconferência. "A razão é compreensível", disse ele, aludindo à prisão do corretor após o interrogatório no Vaticano. "Tudo isso está fora do que pode acontecer nesta fase do tribunal", respondeu Pignatone. E à réplica de Franco: "É uma atitude psicológica, não um risco concreto", acrescentou ele: "Não há nenhuma razão de existir. Ele é livre para não responder, mas não pode ditar as condições." Ainda sobre Torzi, Diddi explicou que foi o próprio corretor que disponibilizou o material que foi então apreendido no momento do interrogatório, entregando cada password diante de seus advogados.
A ordem do Tribunal vaticano
Após exatamente duas horas de câmara de conselho, Pignatone leu uma ordem na qual rejeitou cada pedido da defesa, começando com as perícias, que agora teriam apenas "caráter exploratórios". Ele acrescentou que isto estaria sujeito a "possíveis contestações no resultado do interrogatório de Perlasca no tribunal". O presidente anunciou então que seriam solicitadas informações específicas à Secretaria de Estado a respeito do segredo pontifício oposto por Marogna.
O calendário
Por fim, foi estabelecido o calendário para as próximas audiências: 30 de março, com o interrogatório a monsenhor Mauro Carlino, ex-secretário pessoal de Becciu; 5 de abril, dia em que René Brüllhart e Tommaso Di Ruzza, ex-presidente e diretor da AIF, serão interrogados; 6 de abril, a continuação do interrogatório a Becciu e possivelmente ao financeiro Enrico Crasso, que será ouvido no tribunal em 28 de abril. Novamente, 27 de abril, audiência de Tirabassi e 6 de maio, interrogatório ao gerente Raffaele Mincione.
Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp