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Raniero Cantalamessa OFMCap na primeira pregação do Advento Raniero Cantalamessa OFMCap na primeira pregação do Advento 

Primeira Pregação do Advento - texto integral

O pregador da Casa Pontifícia, o cardeal Raniero Cantalamessa, propôs à Cúria Romana na manhã da sexta-feira, 3 de dezembro, a primeira pregação do Advento com o título “Deus enviou o seu Filho para que todos recebêssemos a filiação adotiva”. O Santo Padre não participou por estar em Viagem Apostólica a Chipre e Grécia.

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

“DEUS ENVIOU O SEU FILHO

PARA QUE TODOS RECEBÊSSEMOS A FILIAÇÃO ADOTIVA”

Primeira Pregação do Advento de 2021

Na Quaresma passada, busquei evidenciar o perigo de viver “etsi Christus non daretur”, “como se Cristo não existisse”. Continuando nesta linha, nas meditações do Advento gostaria de chamar a atenção sobre um outro perigo análogo: aquele de viver “como se a Igreja não fosse mais do que isso”, ou seja, escândalos, controvérsias, embates de personalidades, fofocas ou, no máximo, alguma boa ação em campo social. Em suma, algo humano, como todo o resto ao longo da história.

O que me proponho é evidenciar o esplendor interior da Igreja e da vida cristã. Não para fechar os olhos sobre a realidade de fato ou para nos eximirmos de nossas responsabilidades, mas para encará-las sob a justa perspectiva e não nos deixarmos subjugar por elas. Não podemos pedir aos jornalistas e aos meios de comunicação para que levem em conta como a Igreja interpreta a si mesma (ainda que fosse desejável que o fizessem), mas o mais seria se também nós, homens de Igreja e ministros do Evangelho terminássemos por perder de vista o mistério que habita a Igreja e nos resignássemos em jogar sempre fora de casa e na defensiva.

“Trazemos esse tesouro em vasos de barro”, escreveu o Apóstolo falando do anúncio evangélico (2Cor 4,7). Seria ingênuo passar todo o tempo discutindo sobre o “vaso de barro”, esquecendo “o tesouro”. O Apóstolo nos ajuda a colher mesmo o positivo que há em tal situação. Isto, afirma, acontece “para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).

Acontece com a Igreja como com os vitrais de uma catedral (fiz essa experiência visitando a catedral de Chartres). Se alguém olha os vitrais do exterior, da rua pública, não vê mais do que pedaços de vidro escuro ligados por linhas de chumbo também escuras. Mas se entrarmos nela e olharmos aqueles mesmos vitrais contra a luz, que esplendor de cores, de histórias e significados diante de nossos olhos! Assim, propomo-nos a olhar a Igreja a partir de dentro, no sentido mais forte da palavra, à luz do mistério de que é portadora.

Na Quaresma, orientou-nos o dogma calcedoniano de Cristo verdadeiro homem, verdadeiro Deus, e uma pessoa. Agora, irá nos orientar um dos textos litúrgicos mais típicos do Advento, isto é, Gálatas 4,4-7. Assim afirma:

Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei, a fim de resgatar os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação adotiva. E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abá – ó Pai! Assim já não és mais escravo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro: tudo isso, por graça de Deus.

Em sua brevidade, este trecho é uma síntese de todo o mistério cristão. Está presente a Trindade: Deus Pai, o seu Filho e o Espírito Santo; está a encarnação: “Deus enviou o seu Filho”; tudo isso não em abstrato e fora do tempo, mas em uma história de salvação: “quando se completou o tempo”. Não falta nem mesmo a presença, discreta mas essencial, de Maria: “nascido de uma mulher”. Há, finalmente, o fruto disso tudo: homens e mulheres feitos filhos de Deus e templo do Espírito Santo.

Filhos de Deus!

Nesta primeira meditação, reflitamos sobre a primeira parte do testo: “Deus enviou o seu Filho, para que todos recebêssemos a filiação adotiva”. A paternidade de Deus está no próprio coração da pregação de Jesus. Também no Antigo Testamento Deus é visto como pai. A novidade é que agora Deus não é visto tanto como “pai do seu povo Israel”, em sentido coletivo, por assim dizer, mas como pai de cada ser humano, justo ou pecador que seja: portanto, em sentido individual e pessoal. Ele se preocupa com cada um como se fosse o único; de cada um, conhece as necessidades, os pensamentos e conta até mesmo os cabelos da cabeça.

O erro da Teologia liberal, na passagem entre os séculos XIX e XX (sobretudo em seu mais ilustre representante, Adolf von Harnack), foi o de fazer desta paternidade a essência do Evangelho, prescindindo da divindade de Cristo e do mistério pascal. Um outro erro (iniciado com a heresia de Marcião no II século e jamais completamente superado) é ver no Deus do Antigo Testamento um Deus justo, santo, poderoso e trovejante, e, no Deus de Jesus Cristo, um Deus papai terno, afável e misericordioso.

Não, a novidade de Cristo não consiste nisso. Consiste mais no fato de que Deus, permanecendo o que era no Antigo Testamento, ou seja, três vezes santo, justo e onipotente, agora nos é dado como papai! É esta a imagem fixada por Jesus no início do Pai nosso e que contém in nuce todo o resto: “Pai nosso que estais nos céus”: “que estais nos céus”, isto é, que sois altíssimo, transcendente, que estais distante de nós tanto quanto o céu da terra; mas “pai nosso”, melhor, no original “Abá!”, algo parecido como o nosso papai, meu pai.

É também a imagem de Deus que a Igreja pôs no início do seu credo. “Creio em Deus, Pai todo-poderoso”: pai, mas todo-poderoso; todo-poderoso, mas pai. É isto, de resto, o que todo filho precisa: ter um pai que se volte para ele, que lhe seja terno, com o qual pode brincar, mas que seja, ao mesmo tempo, forte e seguro para protegê-lo, infundir-lhe coragem e liberdade.

Na pregação de Jesus, começa-se a entrever a verdadeira novidade que mudará tudo. Deus não é pai apenas em sentido metafórico e moral, enquanto criou e cuida do seu povo. É também – e antes de tudo – verdadeiro pai de um verdadeiro filho gerado “antes da aurora”, ou seja, antes do início do tempo, e será graças a este Filho único que os homens poderão se tornar também eles filhos de Deus em sentido real e não apenas metafórico. É a novidade que transparece da maneira de Jesus se dirigir ao Pai, chamando-o de Abba e de suas palavras: “Ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27).

Deve-se notar, porém, que na pregação do Jesus terreno ainda não aparece toda a novidade por ele trazida a respeito da paternidade de Deus para com os homens. O âmbito de aplicação do título “Pai” permanece aquele moral; serve, assim, para definir o modo de agir de Deus em relação à humanidade e o sentimento que os homens devem nutrir em relação a Deus. A relação é de tipo existencial, não ainda ontológica e essencial. Para isso, era preciso o mistério pascal da sua morte e ressurreição.

Paulo reflete este estágio pós-pascal da fede. Graças à redenção operada por Cristo e aplicada a nós no batismo, nós não somos mais filhos de Deus em sentido apenas moral, mas também real, ontológico. Nós nos tornamos “filhos no Filho”; Cristo se tornou “o primogênito numa multidão de irmãos” (Rm 8,29).

Para expressar tudo isso, o Apóstolo se serve da ideia da adoção: “...para que todos recebêssemos a filiação adotiva”, “Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos” (Ef 1,5). É apenas uma analogia e, como toda analogia, insuficiente para expressar a plenitude do mistério. A adoção humana, em si mesma, é um fato jurídico. O filho adotivo assume o sobrenome, a cidadania, a residência de quem o adota, mas não compartilha do seu sangue ou do DNA do pai; não houve concepção, dores e parto. Para nós, não é assim. Deus não nos transmite apenas o nome de filhos, mas também a sua vida íntima, o seu Espírito, que é, por assim dizer, o seu DNA. Pelo batismo, em nós corre a mesma vida de Deus.

Sobre este ponto, João é mais audaz do que Paulo. Ele não fala de adoção, mas de verdadeira e própria geração, de nascimento de Deus. Aqueles que acreditaram em Cristo “nasceram de Deus mesmo” (Jo 1,13); no batismo se realiza um nascimento “do Espírito”, se “renasce do alto” (cf. Jo 3,5-6).

Da fé ao estupor

Até aqui, as verdades da nossa fé. Não é sobre elas, porém, que eu gostaria de me deter. São coisas que conhecemos e podemos ler em qualquer manual de teologia bíblica, no Catecismo da Igreja Católica e nos livros de espiritualidade... Qual é, então, a coisa diversa que propomos com esta reflexão?

Para descobri-la, parto de uma frase do nosso Santo Padre na catequese sobre a Carta aos Gálatas, da audiência de 8 de setembro passado. Após ter citado o nosso texto sobre a adoção a filhos, ele acrescentava: “Nós, cristãos, damos frequentemente por certa esta realidade de ser filhos de Deus. Ao contrário, é bom recordar sempre com gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para viver com maior consciência o grande dom recebido”.

É este, pois, o nosso perigo mortal: dar por certas as coisas mais sublimes da nossa fé, inclusive a de sermos nada menos do que filhos de Deus, do criador do universo, do todo-poderoso, do eterno, do doador da vida. São João Paulo II, na sua carta sobre a Eucaristia, escrita pouco antes da sua morte, falava do “estupor eucarístico” que os cristãos deveriam redescobrir[1]. O mesmo devemos dizer da filiação divina: passar da fé ao estupor. Ousaria dizer: da fé à incredulidade! Uma incredulidade toda especial: a de quem crê, sem poder se capacitar daquilo que crê, de tanto que lhe parece algo enorme e impensável.

Ser filhos de Deus comporta, de fato, uma consequência que se ousa apenas formular, do tanto que ela parece vertigem. Graças a ele, o vão ontológico que separa Deus do homem é menor do que o vão ontológico que separa o homem do resto da criação! Sim, porque por graça nós nos tornamos “participantes da natureza divina” (2Pd 1,4).

Um exemplo servirá melhor do que muitos raciocínios para entender o que significa não dar por certo o ser filhos de Deus. Após sua conversão, Santa Margarida de Cortona passou por um período de terrível desolação. Deus parecia furioso com ela e, às vezes, fazia-lhe relembrar, um por um, todos os pecados cometidos, nos mínimos detalhes, fazendo-a desejar desaparecer da face da terra. Um dia, após a comunhão, uma voz de repente irrompeu dentro dela: “Minha filha!”. Ela, que tinha resistido à visão de todas as suas culpas, não resistiu à doçura desta voz, caiu em êxtase e, durante o êxtase, as testemunhas presentes ouviam-na repetir, fora de si, pelo estupor:

Sou sua filha, ele disse. Ó infinita doçura do meu Deus! Ó palavra tão longamente desejada! Tão insistentemente pedida! Palavra cuja doçura supera toda doçura! Oceano de alegria! Minha filha! Assim disse o meu Deus! Minha filha![2].

Muito antes de Santa Margarida, tinha experimentado este mesmo fulgor o apóstolo João: “Vede – escrevia – que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1Jo 3,1). Uma frase, esta, claramente para ser lida com ponto de exclamação.

Primeira Pregação do Advento

Desligar o próprio batismo

Por que é assim importante passar da fé ao estupor, da fé crida (a fides quae) à fé crente (fides qua)? Não é suficiente crer e basta? Não, e por um motivo muito simples: porque isto – e apenas isto – muda realmente a vida!

Busquemos ver qual é o caminho que leva a este novo nível de fé. O Santo Padre, ouvimos, convidava a voltar ao próprio batismo. Para entender como um sacramento recebido há muitos anos, frequentemente nos inícios da vida, possa improvisamente voltar a viver e liberar energia espiritual, é ter presentes alguns elementos de teologia sacramentária.

A teologia católica conhece a ideia de sacramento válido e lícito, mas “ligado”. O batismo frequentemente é um próprio sacramento ligado. Diz-se de um sacramento “ligado” se o seu fruto permanece vinculado, não usufruído, por falta de certas condições que impedem a sua eficácia. Um exemplo extremo é o sacramento do matrimônio ou da sagrada ordem recebidos em estado de pecado mortal. Nestas condições, tais sacramentos não podem conferir nenhuma graça às pessoas. Porém, removido o obstáculo do pecado com uma boa confissão, diz-se que o sacramento revive (reviviscit) graças à fidelidade e à irrevocabilidade do dom de Deus, sem a necessidade de se repetir o rito sacramental[3].

O do matrimônio ou da ordem é, eu dizia, um caso extremo, mas são possíveis outros casos em que o sacramento, mesmo não sendo totalmente ligado, contudo não é nem mesmo completamente desligado, isto é, livre para operar os seus efeitos. No caso do batismo, o que faz com que o fruto do sacramento permaneça ligado? Os sacramentos não são ritos mágicos que agem mecanicamente, sem o conhecimento do homem, ou prescindindo de toda colaboração sua. Sua eficácia é fruto de uma sinergia, ou colaboração, entre a onipotência divina (concretamente: a graça de Cristo ou o Espírito Santo) e a liberdade humana.

Tudo o que no sacramento depende da graça e da vontade de Cristo se chama “a obra operada” (opus operatum), isto é, obra já realizada, fruto objetivo e seguro do sacramento, quando é administrado validamente; tudo isso, por sua vez, que depende da liberdade e das disposições do sujeito, chama-se “a obra a ser operada” (opus operantis), ou seja, a obra a ser realizada, a contribuição do homem.

A parte de Deus ou a graça do batismo é multiforme e riquíssima: filiação divina, remissão dos pecados, habitação do Espírito Santo, virtudes teologais de fé, esperança e caridade infundidas em germe na alma. A contribuição do homem consiste essencialmente na fé! “Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16,16). Há um sincronismo perfeito entre graça e liberdade; acontece como quando os dois polos, positivo e negativo, se tocam e assim liberam a luz.

No batismo recebido quando crianças (mas também no batismo recebido quando adultos, se não foi acompanhado de íntima convicção e participação), este sincronismo vem a faltar. Não se trata de abandonar a prática do batismo de crianças. A Igreja, justamente, sempre o praticou e defendeu, vendo no batismo um dom de Deus, antes mesmo de ser fruto de uma decisão humana. Trata-se mais de uma questão de reconhecer o que esta prática comporta na nova situação histórica em que vivemos.

Uma vez, quando todo o ambiente cristão e impregnado de fé, esta fé podia desabrochar, mesmo se gradualmente. O ato de fé livre e pessoal era “suprido pela Igreja” e expressado, como por pessoa interposta, pelos pais e padrinhos. Agora já não é mais assim. O ambiente em que a criança cresce não é aquele que faz desabrochar nele a fé; frequentemente, não o é a família, menos ainda a escola, e bem menos a sociedade e a cultura.

Eis porque eu falava do batismo como de um sacramento “ligado”. Ele é como uma riquíssima caixa de presente, mas que permanece lacrado, como certos presentes natalinos deixados em algum lugar, antes mesmo de serem abertos. Quem o possui tem os “títulos” para cumprir todos os atos necessários à vida cristã e daí também obter algum fruto, ainda que parcial, mas não possui a plenitude da realidade. Na linguagem de Santo Agostinho, possui o sacramento (sacramentum), mas não – ao menos plenamente – a realidade dele (a res sacramenti).

Se nós estamos aqui meditando sobre isso, quer dizer que já cremos, que em nós a fé se somou ao sacramento. Portanto, o que ainda nossa falta? Falta-nos a fé-estupor, aquele arregalar os olhos e aquele “Oh!” de maravilha ao abrir o presente, que é a recompensa mais grata a quem deu o presente. O batismo – diziam os Padres gregos – é “iluminação” (photismos). Alguma vez, produziu-se em nós esta iluminação?

Perguntamo-nos: é possível – melhor, é lícito – aspirar a este nível diverso de fé em que não apenas se crê, mas se experimenta e se “saboreia” a verdade crida? A espiritualidade cristã frequentemente foi acompanhada de uma reserva, ou mesmo (como no caso dos Reformadores) de uma rejeição da dimensão experiencial e mística da vida cristã, vista como algo inferior e contrário à pura fé. Mas, apesar dos abusos que também aconteceram, na tradição cristã jamais faltou a corrente sapiencial que põe o ápice da fé em “saborear” a verdade das coisas cridas, no “gosto” da verdade, inclusive o gosto amargo da verdade da cruz.

Na linguagem bíblica, conhecer não significa ter a ideia de uma coisa que, contudo, permanece fora e separada de mim; significa entrar em relação com ela, fazer experiência dela (fala-se até de um conhecer a própria esposa, ou conhecer a perda dos filhos!). O evangelista João exclama: “E nós conhecemos o amor que Deus tem para conosco, e acreditamos nele” (1Jo 4,16), e ainda: “Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (Jo 6,69). Por que “conhecemos e cremos”? O que “conhecemos” acrescenta a “cremos”? Acrescenta aquela certeza interior pela qual a verdade se impõe ao espírito somos levados a exclamar dentro de nós: “Sim, é verdade, não há dúvida, é justamente assim!”. A verdade crida se faz realidade vivida. “Fides non terminatur ad enuntiabile sed ad rem”, escreveu Santo Tomás de Aquino: “A fé não termina no enunciado, mas na realidade”[4]. Jamais se termina de descobrir as consequências práticas que derivam deste princípio.

A função da palavra de Deus

Como tornar possível este salto de qualidade da fé ao estupor de nos entendermos como filhos de Deus? A primeira resposta é: a palavra de Deus! (há um segundo meio igualmente essencial – o Espírito Santo – mas o deixaremos para a próxima meditação). São Gregório Magno compara a palavra de Deus à pedra de fogo, ou seja, aquela pedra que um tempo servia para produzir fagulhas e acender o fogo. É preciso, dizia, fazer com a Palavra de Deus o que se faz com a pedra de fogo: friccioná-la repetidamente até se produzir a fagulha[5]. Ruminá-la, repeti-la, também em alta voz.

Em um momento de oração ou adoração, tentemos repetir dentro de nós, sem cansar e com vivo desejo: “Filho de Deus! Sou filho, sou filha de Deus. Deus é meu pai!”  Ou simplesmente dizer: “Pai nosso que estais nos céus”, repetindo-o longamente, sem ir além. Aqui, mais do que nunca é necessário recordar as palavras de Jesus: “Batei e a porta vos será aberta” (Mt 7,7). Cedo ou tarde, quando talvez menos se espera, acontecerá: a realidade das palavras, talvez apenas por um instante, explodirá dentro de você e lhe bastará pelo resto da vida. Mas ainda que não acontecesse nada de impressionante, saiba que você obteve o essencial; o resto lhe será dado no céu.

Todos irmãos!

Um resultado imediato de tudo isso é que você toma consciência da sua dignidade. “Reconhece ó cristão, a tua dignidade – nos exortará Leão Magno na noite de Natal –. Uma vez constituído participante da natureza divina, não penses em voltar às antigas misérias da tua vida passada”[6]. Qual dignidade nos pode ser superior àquela de sermos filhos de Deus? Conta-se que a filha de um rei da França, orgulhosa e mesquinha, repreendia continuamente uma de suas servas e, um dia, gritou-lhe: “Não sabes que sou a filha do teu rei?”, ao que a serva respondeu: “E tu não sabes que sou a filha do teu Deus?”.

Um outro resultado, ainda mais importante, é que você toma consciência da dignidade dos demais, também eles filhos e filhas de Deus. Para nós, cristãos, a fraternidade humana tem a sua razão última no fato de que Deus é pai de todos, que todos somos filhos e filhas de Deus e, por isso, irmãos e irmãs uns dos outros. Não pode haver um vínculo mais forte do que este, e, para nós, cristãos, uma razão mais urgente para promover a fraternidade universal. São Cipriano dizia: “Não pode ter Deus como pai quem não tem a Igreja como mãe”[7]. Devemos acrescentar: “Não pode ter Deus por pai quem não tem o próximo como irmão”.

Por isso, tentaremos não mais fazer uma coisa. Não diremos, nem mesmo tacitamente, a Deus Pai: “Escolhe, entre mim ou meu adversário; declara de que parte estás!”. Não se pode impor a um pai esta alternativa cruel de escolher entre dois filhos, apenas porque estão em litígio entre si. Por isso, não tentaremos Deus, pedindo-lhe para tomar nossa causa contra o irmão.

Quando estivermos em divergência com um irmão, antes mesmo de discutir e fazer o nosso ponto de vista (que também é lícito e às vezes um dever), diremos a Deus: “Pai, salva aquele meu irmão, salva-nos, nós dois; não desejo ter razão e que ele esteja errado. Desejo que também ele esteja na verdade, ou ao menos de boa fé”. Esta misericórdia de uns para com os outros é indispensável para viver a vida do Espírito e a vida comunitária em todas as suas formas. É indispensável para a família e para toda comunidade humana e religiosa, inclusive a Cúria Romana. Nós, diz Santo Agostinho, somos vasos de argila: nós nos machucamos só de nos tocar[8].

Recordamos acima as exclamações de Santa Margarida de Cortona, ao se sentir interiormente chamada por Deus de “minha filha”: “Sou sua filha, ele disse... Oceano de alegria! Minha filha! Assim disse o meu Deus! Minha filha!”. Que pudéssemos alguma vez experimentar algo parecido, escutando aquela mesma voz de Deus, não ressonante em nossa mente (que pode se enganar!), mas escrita, preto no branco, na página da Bíblia que estamos meditando: “Não és mais escravo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro!”.

O Espírito Santo, veremos da próxima vez, se Deus quiser, está pronto para nos ajudar nesta empresa.

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Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap

 

[1] João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 6.

[2] Cf. Giunta Bevegnati, Vita e miracoli della Beata Margherita da Cortona, II, 6 (trad. ital. Vicenza 1978, p. 19ss).

[3] Cf. A. Michel, Reviviscence des sacrements, in DTC, XIII,2, Paris 1937, coll. 2618-2628.

[4] Cf. Summa theologiae, II-II, 1,2, ad 2.

[5] Cf. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, I,2,1.

[6] Cf. Leão Magno, Sermão 1 sobre o Natal, 3.

[7] Cf. Cipriano, De unitate Ecclesiae, 6.

[8] Cf. Agostinho, Discursos, 69 (PL 38, 440) (lutea vasa sibi invicem angustias facientes).

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03 dezembro 2021, 11:32