Amoris laetitia: o matrim?nio, ¨ªcone do amor de Deus
(n. 120-164)
Crescer na caridade conjugal
120. O cântico de São Paulo, que acabámos de repassar, permite-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor que une os esposos, amor santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimónio. É uma «união afectiva», espiritual e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem. O Papa Pio XI ensinava que este amor permeia todos os deveres da vida conjugal e «detém como que o primado da nobreza». Com efeito, este amor forte, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na cruz. «O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge assim aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal».
121. O matrimónio é um sinal precioso, porque, «quando um homem e uma mulher celebram o sacramento do matrimónio, Deus, por assim dizer, ¡°espelha-Se¡± neles, imprime neles as suas características e o carácter indelével do seu amor. O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós. Com efeito, também Deus é comunhão: as três Pessoas ¨C Pai, Filho e Espírito Santo ¨C vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que consiste o mistério do matrimónio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência». Isto tem consequências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, «em virtude do sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam tornar visível, a partir das realidades simples e ordinárias, o amor com que Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela».
122. Todavia convém não confundir planos diferentes: não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimónio como sinal implica «um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus».
A vida toda, tudo em comum
123. Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal é a «amizade maior». É uma união que tem todas as características duma boa amizade: busca do bem do outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre os amigos que se vai construindo com a vida partilhada. O matrimónio, porém, acrescenta a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no projecto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Sejamos sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projecta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; quem vive intensamente a alegria de se casar não está a pensar em algo de passageiro; aqueles que acompanham a celebração duma união cheia de amor, embora frágil, esperam que possa perdurar no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas também que sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo. A união, que se cristaliza na promessa matrimonial para sempre, é mais do que uma formalidade social ou uma tradição, porque radica-se nas inclinações espontâneas da pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança diante de Deus, que exige fidelidade: «O Senhor constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua companheira e aquela com quem fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a mulher da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio» (Ml 2, 14.15-16).
124. Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de aceitar o matrimónio como um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar sempre de novo até à morte, não pode sustentar um nível alto de compromisso. Cede à cultura do provisório, que impede um processo constante de crescimento. Mas «prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada». Para que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo, requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto Belarmino, «o facto de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande mistério».
125. Além disso, o matrimónio é uma amizade que inclui as características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma união cada vez mais firme e intensa. Com efeito, «não foi instituído só em ordem à procriação», mas para que o amor mútuo «se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade». Esta amizade peculiar entre um homem e uma mulher adquire um carácter totalizante, que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta união também é exclusiva, fiel e aberta à geração. Partilha-se tudo, incluindo a sexualidade, sempre no mútuo respeito. Isto mesmo expressou o Concílio Vaticano II ao dizer que, «unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e com as obras, e penetra toda a sua vida».
Alegria e beleza
126. No matrimónio, convém cuidar a alegria do amor. Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar outros tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar prazerem realidades variadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga. Por isso, dizia São Tomás que se usa a palavra «alegria» para se referir à dilatação da amplitude do coração. A alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do sofrimento, implica aceitar que o matrimónio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a cuidarem um do outro: «prestam-se recíproca ajuda e serviço».
127. O amor de amizade chama-se «caridade», quando capta e aprecia o «valor sublime» que tem o outro. A beleza ¨C o «valor sublime» do outro, que não coincide com os seus atractivos físicos ou psicológicos ¨C permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa, sem a imperiosa necessidade de a possuir. Na sociedade de consumo, o sentido estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta. Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe para além das minhas necessidades. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável, agressivo ou chato. Por isso, «do amor pelo qual uma pessoa me é agradável, depende que lhe dê algo de graça».
128. A experiência estética do amor exprime-se naquele olhar que contempla o outro como fim em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou privado de atractivos sensíveis. O olhar que aprecia tem uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz dano. Às vezes, quantas coisas fazem os cônjuges e os filhos para ser considerados e tidos em conta! Muitas feridas e crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar. Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias: «O meu marido não me olha, para ele parece que sou invisível». «Por favor, olha para mim, quando te falo». «A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para os filhos». «Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como se não existisse». O amor abre os olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
129. A alegria deste amor contemplativo deve ser cultivada. Uma vez que somos feitos para amar, sabemos que não há maior alegria do que partilhar um bem: «Dá e recebe, e alegra a tua vida» (Sir 14, 16). As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna fecundo nele.
130. Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Como dizia Santo Agostinho, «quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo». Depois de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor
131. Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado, quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento real e concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um consentimento externo ou uma forma de contrato matrimonial, mas é igualmente certo que a decisão de dar ao matrimónio uma configuração visível na sociedade com certos compromissos manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da identificação com o outro, indica uma superação do individualismo de adolescente e expressa a firme opção de se pertencerem um ao outro. Casar-se é uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova responsabilidade perante outra pessoa. Isto vale muito mais do que uma mera associação espontânea para mútua compensação, que seria a privatização do matrimónio. Este, como instituição social, é protecção e instrumento para o compromisso mútuo, para o amadurecimento do amor, para que a opção pelo outro cresça em solidez, concretização e profundidade, e possa, por sua vez, cumprir a sua missão na sociedade. Por isso, o matrimónio supera qualquer moda passageira e persiste. A sua essência está radicada na própria natureza da pessoa humana e do seu carácter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.
132. Semelhante opção pelo matrimónio expressa a decisão real e efectiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste este compromisso público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de forma exclusiva e definitiva com outrem sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousada. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado incondicionalmente. Aliás, aqueles que estão verdadeiramente enamorados tendem a manifestar aos outros o seu amor. O amor concretizado num matrimónio contraído diante dos outros, com todas as obrigações decorrentes dessa institucionalização, é manifestação e protecção dum «sim» que se dá sem reservas nem restrições. Este sim significa dizer ao outro que poderá sempre confiar, não será abandonado, se perder atractivo, se tiver dificuldades ou se se apresentarem novas possibilidades de prazer ou de interesses egoístas.
Amor que se manifesta e cresce
133. O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família, «é necessário usar três palavras: com licença, obrigado, desculpa. Três palavras-chave». «Quando numa família não somos invasores e pedimos ¡°com licença¡±, quando na família não somos egoístas e aprendemos a dizer ¡°obrigado¡±, e quando na família nos damos conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos ¡°desculpa¡±, nessa família existe paz e alegria». Não sejamos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos generosos repetindo-as dia-a-dia, porque «pesam certos silêncios, às vezes mesmo em família, entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre irmãos». Pelo contrário, as palavras adequadas, ditas no momento certo, protegem e alimentam o amor dia após dia.
134. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo crescimento. Esta forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada a um amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino dizia da caridade: «A caridade, devido à sua natureza, não tem um termo de aumento, porque é uma participação da caridade infinita que é o Espírito Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe um termo, porque, ao crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um aumento maior». Paulo exortava com veemência: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade uns para com os outros» (1Ts 3, 12); e acrescenta: «A respeito do amor (...), exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais» (1Ts 4, 9.10). Sempre mais. O amor matrimonial não se estimula falando, antes de mais nada, da indissolubilidade como uma obrigação, nem repetindo uma doutrina, mas robustecendo-o por meio dum crescimento constante sob o impulso da graça. O amor que não cresce, começa a correr perigo; e só podemos crescer correspondendo à graça divina com mais actos de amor, com actos de carinho mais frequentes, mais intensos, mais generosos, mais ternos, mais alegres. O marido e a mulher «tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a realizam». O dom do amor divino que se derrama nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um constante desenvolvimento deste dom da graça.
135. Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idílico e perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Uma ideia celestial do amor terreno esquece que o melhor ainda não foi alcançado, o vinho sazonado com o tempo. Como recordaram os bispos do Chile, «não existem as famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não passam os anos, não existe a doença, a tribulação nem a morte. (...) A publicidade consumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com a realidade que devem enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família». É mais saudável aceitar com realismo os limites, os desafios e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a solidez da união, suceda o que suceder.
O diálogo
136. O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e familiar. Mas requer uma longa e diligente aprendizagem. Homens e mulheres, adultos e jovens têm maneiras diversas de comunicar, usam linguagens diferentes, regem-se por códigos distintos. O modo de perguntar, a forma de responder, o tom usado, o momento escolhido e muitos outros factores podem condicionar a comunicação. Além disso, é sempre necessário cultivar algumas atitudes que são expressão de amor e tornam possível o diálogo autêntico.
137. Reservar tempo, tempo de qualidade, que permita escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que precisava de comunicar. Isto requer a ascese de não começar a falar antes do momento apropriado. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de dizer. Isto implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração e na mente: despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e urgências, dar espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não precisa duma solução para os seus problemas, mas de ser ouvido. Tem de sentir que se apreendeu a sua mágoa, a sua desilusão, o seu medo, a sua ira, a sua esperança, o seu sonho. Todavia é frequente ouvir estes queixumes: «Não me ouve. E quando parece que o faz, na realidade está a pensar noutra coisa». «Falo-lhe e tenho a sensação de que está à espera que acabe de vez». «Quando lhe falo, tenta mudar de assunto ou dá-me respostas rápidas para encerrar a conversa».
138. Desenvolver o hábito de dar real importância ao outro. Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir, pensar de maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar aquilo que diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de vista. A tudo isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois têm outra experiência da vida, olham doutro ponto de vista, desenvolveram outras preocupações e possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a verdade do outro, a importância das suas preocupações mais profundas e a motivação de fundo do que diz, inclusive das palavras agressivas. Para isso, é preciso colocar-se no seu lugar e interpretar a profundidade do seu coração, individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o diálogo.
139. Amplitude mental, para não se encerrar obsessivamente numas poucas ideias, e flexibilidade para poder modificar ou completar as próprias opiniões. É possível que, do meu pensamento e do pensamento do outro, possa surgir uma nova síntese que nos enriqueça a ambos. A unidade, a que temos de aspirar, não é uniformidade, mas uma «unidade na diversidade» ou uma «diversidade reconciliada». Neste estilo enriquecedor de comunhão fraterna, seres diferentes encontram-se, respeitam-se e apreciam-se, mas mantendo distintos matizes e acentos que enriquecem o bem comum. Temos de nos libertar da obrigação de ser iguais. Também é necessária sagacidade para advertir a tempo eventuais «interferências», a fim de que não destruam um processo de diálogo. Por exemplo, reconhecer os maus sentimentos que poderiam surgir e relativizá-los, para não prejudicarem a comunicação. É importante a capacidade de expressar aquilo que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem e um modo de falar que possam ser mais facilmente aceites ou tolerados pelo outro, embora o conteúdo seja exigente; expor as próprias críticas, mas sem descarregar a ira como uma forma de vingança, e evitar uma linguagem moralizante que procure apenas agredir, ironizar, culpabilizar, ferir. Há tantas discussões no casal que não são por questões muito graves; às vezes trata-se de pequenas coisas, pouco relevantes, mas o que altera os ânimos é o modo de as dizer ou a atitude que se assume no diálogo.
140. Ter gestos de solicitude pelo outro e demonstrações de carinho. O amor supera as piores barreiras. Quando se pode amar alguém ou quando nos sentimos amados por essa pessoa, conseguimos entender melhor o que ela quer exprimir e fazer-nos compreender. É preciso superar a fragilidade que nos leva a temer o outro como se fosse um «concorrente». É muito importante fundar a própria segurança em opções profundas, convicções e valores, e não no desejo de ganhar uma discussão ou no facto de nos darem razão.
141.Por último, reconheçamos que, para ser profícuo o diálogo, é preciso ter algo para se dizer; e isto requer uma riqueza interior que se alimenta com a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à sociedade. Caso contrário, a conversa torna-se aborrecida e inconsistente. Quando cada um dos cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma variedade de relações com outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâmica e o diálogo fica empobrecido.
Amor apaixonado
142. O Concílio Vaticano II ensinou que este amor conjugal «compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir especial dignidade às manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e sinais peculiares do amor conjugal». Deve haver qualquer motivo para um amor sem prazer nem paixão se revelar insuficiente a simbolizar a união do coração humano com Deus: «Todos os místicos afirmaram que o amor sobrenatural e o amor celeste encontram os símbolos que procuram mais no amor matrimonial do que na amizade, no sentimento filial ou na dedicação a uma causa. E o motivo encontra-se precisamente na sua totalidade». Sendo assim, por que não determo-nos a falar dos sentimentos e da sexualidade no matrimónio?
O mundo das emoções
143. Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos chamavam-lhes «paixões») ocupam um lugar importante no matrimónio. Geram-se quando «outro» se torna presente e intervém na minha vida. É próprio de todo o ser vivo tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais afectivos basilares: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. São o pressuposto da actividade psicológica mais elementar. O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
144. Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas com grande emotividade. Por isso, sofria com a rejeição de Jerusalém (cf. Mt 23, 37) e, por esta situação, chorou (cf. Lc 19, 41). Compadecia-Se também à vista da multidão atribulada (cf. Mc 6, 34). Vendo os outros a chorar, comovia-Se e turbava-Se (cf. Jo 11, 33), e Ele mesmo chorou pela morte dum amigo (cf. Jo 11, 35). Estas manifestações da sua sensibilidade mostram até que ponto estava aberto aos outros o seu coração humano.
145. Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem mau. Começar a sentir desejo ou repulsa não é pecaminoso nem censurável. O que pode ser bom ou mau é o acto que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois, se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más acções, o mal está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem. Na mesma linha, sentir atração por alguém não é, de por si, um bem. Se esta atracção me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque «provamos sentimentos», é um tremendo engano. Há pessoas que se sentem capazes dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não conseguem lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios desejos. Neste caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
146. Entretanto, se uma paixão acompanha o acto livre, pode manifestar a profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida emotiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em comum. A maturidade chega a uma família, quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade, brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
147. Isto requer um caminho pedagógico, um processo que inclui renúncias: é uma convicção da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo mundo como se fosse inimiga da felicidade humana. Bento XVI regista esta crítica com muita clareza: «Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?» Mas ele responde que, embora não tenham faltado exageros ou ascetismos extraviados no cristianismo, a doutrina oficial da Igreja, fiel à Sagrada Escritura, não rejeitou «o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros (¡) priva-o da sua dignidade, desumaniza-o».
148. É necessária a educação da emotividade e do instinto e, para isso, às vezes torna-se indispensável impormo-nos algum limite. O excesso, o descontrole, a obsessão por um único tipo de prazeres acabam por debilitar e combalir o próprio prazer, e prejudicam a vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as paixões, o que significa orientá-las cada vez mais num projeto de auto doação e plena realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da família. Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer, mas assumi-los de certo modo entrelaçados com outros momentos de dedicação generosa, espera paciente, inevitável fadiga, esforço por um ideal. A vida em família é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.
149. Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do ser humano, pois Ele criou tudo «para nosso usufruto» (1 Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: «No dia da felicidade, sê alegre» (Qo 7, 14). A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo com as necessidades do amor mútuo. Neste sentido, pode-se aceitar a proposta de alguns mestres orientais que insistem em ampliar a consciência, para não ficar presos numa experiência muito limitada que nos fecharia as perspectivas. Esta ampliação da consciência não é a negação ou a destruição do desejo, mas a sua dilatação e aperfeiçoamento.
A dimensão erótica do amor
150. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se produza o «depauperamento de um valor autêntico». São João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a «uma negação do valor do sexo humano» ou que o tolere simplesmente «pela necessidade da procriação». A necessidade sexual dos esposos não é objecto de menosprezo, e «não se trata de modo algum de pôr em questão aquela necessidade».
151. A quantos receiam que, com a educação das paixões e da sexualidade, se prejudique a espontaneidade do amor sexual, São João Paulo II respondia que o ser humano «é também chamado à plena e matura espontaneidade das relações», que «é o fruto gradual do discernimento dos impulsos do próprio coração». É algo que se conquista, pois todo o ser humano «deve, perseverante e coerentemente, aprender o que é o significado do corpo». A sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável. Assim, «o coração humano torna-se participante, por assim dizer, de outra espontaneidade». Neste contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade. Nele pode-se encontrar o «significado esponsal do corpo e a autêntica dignidade do dom». Nas suas catequeses sobre a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que a corporeidade sexuada «é não só fonte de fecundidade e de procriação», mas possui «a capacidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom». O erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.
152. Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro, torna-se uma «afirmação amorosa plena e cristalina», mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, «sente-se que a existência humana foi um sucesso».
Violência e manipulação
153. No contexto desta visão positiva da sexualidade, é oportuno apresentar o tema na sua integridade e com um são realismo. Pois não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias, de modo que «se torna cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos». Neste tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito venenoso do «usa e joga fora». Com frequência, o corpo do outro é manipulado como uma coisa que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza quando perde atractivo. Podem-se porventura ignorar ou dissimular as formas constantes de domínio, prepotência, abuso, perversão e violência sexual que resultam duma distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade dos outros e o apelo ao amor sob uma obscura procura de si mesmo?
154. Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimónio, a sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos reafirmar, claramente, que «um acto conjugal imposto ao próprio cônjuge, sem consideração pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um verdadeiro acto de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de recta ordem moral, nas relações entre os esposos». Os actos próprios da união sexual dos cônjuges correspondem à natureza da sexualidade querida por Deus, se forem vividos «de modo autenticamente humano». Por isso, São Paulo exortava: «Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite do seu irmão» (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse numa época em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve ser uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as relações sexuais por algum tempo, mas «de mútuo acordo» (1 Cor 7, 5).
155. São João Paulo II fez uma advertência muito subtil, quando disse que o homem e a mulher são «ameaçados pela insaciabilidade». Por outras palavras, são chamados a uma união cada vez mais intensa, mas correm o risco de pretender apagar as diferenças e a distância inevitável que existe entre os dois. Com efeito, cada um possui uma dignidade própria e irrepetível. Quando o bem precioso da pertença recíproca se transforma em domínio, «muda essencialmente a estrutura de comunhão na relação interpessoal». Na lógica do domínio, o dominador acaba também negando a sua própria dignidade e, em última análise, deixa «de identificar-se subjectivamente com o próprio corpo», porque lhe tira todo o significado. Vive o sexo como evasão de si mesmo e como renúncia à beleza da união.
156. É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de submissão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que «as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos» (Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em categorias culturais próprias daquela época; nós não devemos assumir esta roupagem cultural, mas a mensagem revelada que subjaz ao conjunto da perícope. Retomemos a sábia explicação de São João Paulo II: «O amor exclui todo o género de submissão, pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...). A comunidade ou unidade, que devem constituir por causa do matrimónio, realiza-se através de uma recíproca doação, que é também submissão mútua». Por isso, se diz que «devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu próprio corpo» (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida a superar o cómodo individualismo para viver disponíveis aos outros: «Submetei-vos uns aos outros» (Ef 5, 21). Entre os cônjuges, esta recíproca «submissão» adquire um significado especial, devendo-se entender como uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de características de fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao serviço desta amizade conjugal de modo inseparável, porque tende a procurar que o outro viva em plenitude.
157. Entretanto a rejeição das distorções da sexualidade e do erotismo nunca deveria levar-nos ao seu desprezo nem ao seu descuido. O ideal do matrimónio não pode configurar-se apenas como uma doação generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos de que um amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual. Bento XVI era claro a este respeito: «Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade». Por esta razão, «o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom». Em todo o caso, isto supõe ter presente que o equilíbrio humano é frágil, sempre permanece algo que resiste a ser humanizado e que, a qualquer momento, pode fugir-nos de mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas e egoístas.
Matrimónio e virgindade
158. «Muitas pessoas, que vivem sem se casar, não só se dedicam à sua família de origem, mas muitas vezes realizam grandes serviços no seu círculo de amigos, na comunidade eclesial e na vida profissional (...). Muitos colocam os seus talentos também ao serviço da comunidade cristã sob a forma de assistência caritativa e voluntariado. Temos ainda aqueles que não se casam, porque consagram a vida por amor de Cristo e dos irmãos. Com a sua dedicação, é extraordinariamente enriquecida a família, na Igreja e na sociedade».
159. A virgindade é uma forma de amor. Como sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao serviço da evangelização (cf. 1Cor 7, 32) e é um reflexo da plenitude do Céu, onde «nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos» (Mt 22, 30). São Paulo recomendava a virgindade, porque esperava para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: «O tempo é breve» (1Cor 7, 29). Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1Cor 7, 6-8), não uma exigência de Cristo: «Não tenho nenhum preceito do Senhor» (1Cor 7, 25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: «Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra» (1Cor 7, 7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos «não oferecem motivo para sustentar nem a ¡°inferioridade¡± do matrimónio, nem a ¡°superioridade¡± da virgindade ou do celibato» devido à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande como «a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a humana».
160. Portanto «não se trata de diminuir o valor do matrimónio em favor da continência» e «não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se, considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status perfectionis), não é por motivo da continência mesma, mas a propósito do conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos». Entretanto uma pessoa casada pode viver a caridade num grau altíssimo. E assim «chega àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem».
161. A virgindade tem o valor simbólico do amor que não necessita de possuir o outro, reflectindo assim a liberdade do Reino dos Céus. É um convite para os esposos viverem o seu amor conjugal na perspectiva do amor definitivo a Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Reino. Por sua vez, o amor dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um lado, é reflexo peculiar da Trindade, porque a Trindade é unidade plena na qual existe também a distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico, porque mostra a proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano unindo-Se-lhe na encarnação, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se «uma só carne» com o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim. Enquanto a virgindade é um sinal «escatológico» de Cristo ressuscitado, o matrimónio é um sinal «histórico» para nós que caminhamos na terra, um sinal de Cristo terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao derramamento do seu sangue. A virgindade e o matrimónio são ¨C e devem ser ¨C modalidades diferentes de amar, porque «o homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor».
162. O celibato corre o risco de ser uma cómoda solidão, que dá liberdade para se mover autonomamente, mudar de local, tarefa e opção, dispor do seu próprio dinheiro, conviver com as mais variadas pessoas segundo a atracção do momento. Neste caso, sobressai o testemunho das pessoas casadas. Aqueles que foram chamados à virgindade podem encontrar, nalguns casais de esposos, um sinal claro da fidelidade generosa e indestrutível de Deus à sua Aliança, que pode estimular os seus corações a uma disponibilidade mais concreta e oblativa. Com efeito, há pessoas casadas que mantêm a sua fidelidade, quando o cônjuge se tornou fisicamente desagradável ou deixou de satisfazer as suas necessidades; e fazem-no, não obstante muitas ocasiões os convidarem à infidelidade ou ao abandono. Uma mulher pode cuidar do marido doente e ali, ao pé da Cruz, volta a oferecer o «sim» do seu amor até à morte. Em semelhante amor, manifesta-se de forma esplêndida a dignidade de quem ama, dignidade como reflexo da caridade, já que é mais próprio da caridade amar do que ser amado. Uma capacidade de serviço oblativo e carinhoso pode ser observada também em muitas famílias com filhos difíceis e até ingratos. Isto faz desses pais um sinal do amor livre e desinteressado de Jesus. Tudo isto se torna, para as pessoas celibatárias, um convite a viverem a sua dedicação ao Reino com maior generosidade e disponibilidade. Hoje, a secularização ofuscou o valor duma união para toda a vida e debilitou a riqueza da dedicação matrimonial, pelo que «é preciso aprofundar os aspectos positivos do amor conjugal».
A transformação do amor
163. O alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha. Talvez o cônjuge já não esteja apaixonado com um desejo sexual intenso que o atraia para outra pessoa, mas sente o prazer de lhe pertencer e que esta pessoa lhe pertença, de saber que não está só, de ter um «cúmplice» que conhece tudo da sua vida e da sua história e tudo partilha. É o companheiro no caminho da vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades e gozar das coisas lindas. Também isto gera uma satisfação, que acompanha a decisão própria do amor conjugal. Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projecto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade. O amor, que nos prometemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que envolve toda a existência. Assim, no meio dum conflito não resolvido e ainda que muitos sentimentos confusos girem pelo coração, mantém-se viva dia-a-dia a decisão de amar, de se pertencer, de partilhar a vida inteira e continuar a amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois realiza um caminho de crescimento e mudança pessoal. No curso de tal caminho, o amor celebra cada passo, cada etapa nova.
164. Na história dum casal, a aparência física muda, mas isso não é motivo para que a atracção amorosa diminua. Um cônjuge enamora-se pela pessoa inteira do outro, com uma identidade própria, e não apenas pelo corpo, embora este corpo, independentemente do desgaste do tempo, nunca deixe de expressar de alguma forma aquela identidade pessoal que cativou o coração. Quando os outros já não podem reconhecer a beleza desta identidade, o cônjuge enamorado continua a ser capaz de a individuar com o instinto do amor, e o carinho não desaparece. Reitera a sua decisão de lhe pertencer, volta a escolhê-lo, e exprime esta escolha numa proximidade fiel e cheia de ternura. A nobreza da sua opção pelo outro, por ser intensa e profunda, desperta uma nova forma de emoção no cumprimento desta missão conjugal. Com efeito, «a emoção provocada por outro ser humano como pessoa (...) não tende, de per si, para o acto conjugal». Adquire outras expressões sensíveis, porque o amor «é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais». O vínculo encontra novas modalidades e exige a decisão de reatá-lo repetidamente; e não só para o conservar, mas para o fazer crescer. É o caminho de se construir dia após dia. Entretanto nada disto é possível, se não se invoca o Espírito Santo, se não se clama todos os dias pedindo a sua graça, se não se procura a sua força sobrenatural, se não Lhe fazemos presente o desejo de que derrame o seu fogo sobre o nosso amor para o fortalecer, orientar e transformar em cada nova situação.
Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp