Depoimento de mulher abusada: estamos aqui para renascer das nossas feridas
Cidade do Vaticano
“Desde então – contou – eu que adorava cores e estava sempre brincando alegre e despreocupada, deixei de existir”. No final de cada abuso – contou – “retomava o meu corpo ferido e humilhado e ia embora pensando que não fosse verdade, que tinha imaginado tudo. Mas como eu podia, criança, entender o que tinha acontecido? Pensava: “Certamente deve ser minha culpa!” ou “será que mereci este mal? Estes pensamentos – sublinhou – são as maiores dilacerações que o abuso e o abusador insinuam no teu coração, mais do que as próprias feridas que dilaceram o corpo. Sentia que não eu valia mais nada, nem mesmo para viver. Queria morrer: tentei… mas não consegui”.
As consequências dos abusos
Depois a mulher recordou os efeitos devastadores daqueles abusos: distúrbios alimentares, hospitalizações: todas manifestações do seu mal estar enquanto que, completamente só, calava a sua dor. Tudo era atribuído à ânsia pela escola que de improviso baixou seu rendimento.
Uma vida afetiva e familiar destruída pela dramática experiência
Com o primeiro namoro veio à tona uma realidade insuportável. “Para não sentir a dor, o nojo, a confusão, o medo, a vergonha, a impotência, a inadequação – recordou – a minha mente eliminou os fatos acontecidos, anestesiou o meu corpo colocando distâncias emotivas em relação a tudo o que me fazia sentir destruída”. Quando fiz o primeiro parto tudo voltou à mente: o trabalho de parto bloqueado, o filho em perigo, a lactação impossível pelas terríveis lembranças que voltavam com insistência. “Pensei que tinha enlouquecido” confessou. Quando confessou tudo ao marido, a confissão foi usada contra ela durante a separação, porque, em nome do abuso sofrido, ele pediu que lhe fosse tirada a perda da guarda do filho por ser mãe indigna.
Não deixar aos que abusam o poder do seu silêncio
Depois, graças a escuta paciente de uma pessoa amiga, a mulher encontrou coragem para escrever uma carta ao sacerdote abusador, concluindo com a promessa de jamais deixá-lo com o poder do seu silêncio. “Desde então e até hoje, continuo fazendo um difícil percurso de reelaboração para reconstruir em mim mesma identidade, dignidade e fé. O abuso cria um dano imediato, mas não é só isso: deve-se conviver com isso… para sempre”! Pode-se apenas aprender, se conseguir, a deixar-se ferir menos”.
Uma infinidade de perguntas às quais não encontra resposta
“Por que eu?”, perguntava-se, ou senão: “Onde estava Deus?”. “Quanto eu chorei com esta pergunta!” confessou. “Não tinha mais confiança no Homem e em Deus, no Pai-bom que protege os pequenos e os fracos. Eu, como criança, tinha certeza que nada de mal poderia vir de um homem que representava Deus! Como podia a mesmas mãos que tinham ousado tanto sobre mim, abençoar e oferecer a Eucaristia? Ele adulto e eu criança… tinha aproveitado do seu poder e do seu papel: um verdadeiro abuso de fé! E também: como fazer para superar a raiva e não se afastar da Igreja – perguntou-se – depois de uma experiência dessas principalmente diante da gravíssima incoerência com o que pregava e fazia o meu abusador. Também diante dos que, perante esses crimes, minimizam, escondem, mandam calar, ou ainda pior não defendem os pequenos, limitando-se com mesquinhez a deslocar os sacerdotes para fazerem dano em outros lugares? Diante disso, nós vítimas inocentes, sentimos amplificada a dor que nos matou: isso também é um abuso à nossa dignidade humana, à nossa consciência, assim como à nossa fé! Nós vítimas, se conseguirmos ter força de falar e denunciar, devemos encontrar coragem de fazê-lo mesmo sabendo que corremos o risco de não sermos acreditados ou de ter que ver o abusador receber uma pequena sentença canônica. Isso não pode e não deve ser assim!”.
40 anos para encontrar a força para denúncia
“Queria romper o silêncio com o qual se nutre todas as formas de abuso, queria recomeçar com um ato de verdade, descobrindo mais tarde que este ato oferecia uma oportunidade também ao meu abusador”, continuou. O procedimento de denúncia foi vivido com um custo emotivo muito alto, principalmente encontrou dificuldade de falar com seis pessoas com grande sensibilidade, mas apenas homens, principalmente sacerdotes. “Acredito – sustentou – que uma presença feminina seria uma atenção necessária assim como indispensável para acolher, escutar e acompanhar nós vítimas. Aquela parte de mim que sempre esperou que o abuso nunca tivesse acontecido, teve que se render, mas ao mesmo tempo recebeu uma carícia. Agora sei eu sou outra, além do abuso que sofri e as cicatrizes que carrego”.
A vítima não é culpada pelo seu silêncio! As feridas não são prescritíveis
“A Igreja – sublinhou – deve se orgulhar pela possibilidade de proceder em derrogação no tempo de prescrição, mas não do fato de reconhecer como atenuante, para quem abusa, a entidade do tempo passado entre os fatos e a denúncia (como no meu caso). A vítima não é culpada pelo seu silêncio! O trauma e os danos sofridos aumentam a medida que o tempo do silêncio aumenta, que a vítima permanece entre o medo, vergonha, remoção e sentido de impotência. As feridas jamais vão em prescrição, ao contrário!”.
Recomeçar com quem não superou, para renascer das próprias feridas
“Hoje estou aqui – concluiu – e comigo há meninos e meninas abusadas, mulheres e homens que tentam renascer das suas feridas, mas há, principalmente, os que tentaram mas não conseguiram e daqui, com seus corações, devemos recomeçar juntos”.
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