Francisco: os migrantes nos pedem para cultivar o sonho da fraternidade
Papa Francisco
Desde o início do meu pontificado, tenho dado atenção especial ao drama dos migrantes, um dos sinais dos tempos desta era histórica. Em minha primeira viagem apostólica, fui a Lampedusa, um lugar simbólico de naufrágios e acolhida, e lá destaquei o ponto central da questão:
«Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim», diz o Senhor Deus. Esta não é uma pergunta posta a outrem; é uma pergunta posta a mim, a ti, a cada um de nós.
De fato, o drama dos migrantes desafia nossa identidade mais profunda: trata-se de escolher se queremos ou não ser verdadeiramente irmãos e irmãs. Reiterei isso no encontro dos bispos e dos jovens do Mediterrâneo em Marselha, em 22 de setembro de 2023:
diante de nós temos uma encruzilhada: dum lado, a fraternidade, que fecunda de bem a comunidade humana; do outro, a indiferença, que ensanguenta o Mediterrâneo. Encontramo-nos perante uma encruzilhada de civilização. Ou a cultura da humanidade e da fraternidade, ou a cultura da indiferença: cada um se desembarace como puder.
Ao longo dos anos, encontrei várias vezes pessoas migrantes cujas histórias resumiam em si as histórias de muitos: alguns desses encontros, como com Bentolo e com Pato, são relatados neste livro. Ao conhecê-los, eu queria enfatizar que eles são realmente irmãos e irmãs e nos ajudam a redescobrir a fraternidade universal. Aqueles que praticam o acolhimento sabem que a amizade com os pobres é salvífica, porque por meio deles, os irmãos prediletos de Jesus, temos uma experiência especial do amor de Jesus e redescobrimos a beleza de também fazer parte dessa grande fraternidade. Reiterei isso ao me dirigir diretamente aos migrantes:
Tratados como um peso, um problema, um custo, sois ao contrário um dom. Sois o testemunho de que o nosso Deus clemente e misericordioso sabe transformar o mal e a injustiça dos quais sofreis num bem para todos. Porque cada um de vós pode ser uma ponte que une povos distantes, que torna possível o encontro entre culturas e religiões diversas, um caminho para redescobrir a nossa comum humanidade.
A fraternidade é um grito: os migrantes que batem às nossas portas trazem esse grito dentro de si: pedem para serem reconhecidos como irmãos e irmãs, para caminharem juntos. O socorro e a acolhida não são apenas gestos humanitários essenciais, são gestos que dão corpo à fraternidade, que constroem a civilização. Várias vezes expressei publicamente minha gratidão à Mediterranea Saving Humans e a todas as realidades que praticam o resgate e o acolhimento. Também sou grato aos fiéis, aos consagrados e aos bispos que os acompanham de várias maneiras. A Igreja acompanha este caminho, porque é o Evangelho que exige isso: a Igreja não tem alternativa, se não seguir Jesus, se não amar como Jesus ama, perde o próprio significado de seu ser. Dar corpo à fraternidade universal é o sonho que Deus nos confiou desde o início da criação: todos os que participam dessa missão colaboram com o sonho de Deus. Uma realidade que dá corpo à fraternidade de modo especial são os movimentos populares, que também são mencionados neste livro. Conheci os movimentos populares quando era arcebispo de Buenos Aires: encontrei neles o que mais tarde chamei de “mística dos movimentos populares”, ou seja, aquela compaixão visceral que se transforma em ação comunitária e leva os pobres a se darem a mão, a se organizarem, a lutarem juntos e a construírem juntos outra sociedade. Acompanhando os movimentos populares em Buenos Aires, entendi que embora incomodem e mesmo se alguns «pensadores» não sabem como classificá-los, é preciso ter a coragem de reconhecer que, sem eles, «a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencarnando porque deixa fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção de seu destino».
Nos últimos anos, participei dos quatro encontros mundiais de movimentos populares e de seus encontros regionais e convidei a Igreja a acompanhá-los:
Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada Comissão «Justiça e Paz», uma colaboração real, permanente e comprometida com os movimentos populares. Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais a aprofundar este encontro.
O sonho da fraternidade, que os migrantes nos pedem para cultivar e que coloquei no centro do meu pontificado, é o sonho de Deus e a Igreja sempre o promoveu, relançando-o fortemente desde o Concílio Vaticano II e o pontificado de São João XXIII. Gostaria de concluir o prefácio deste livro citando as palavras de seu próprio secretário particular, Mons. Loris Capovilla, que criei cardeal em 2014 e que é mencionado neste livro. Quando completou 100 anos de idade, em 14 de outubro de 2015, escolheu comemorar com alguns migrantes. Abraçando um deles, Issa, que veio do Mali, um muçulmano, disse estas palavras:
Issa, que Deus te abençoe. [...] Existe apenas uma família humana, eu sou um cidadão do mundo, como tu, querido Issa. Só que eu já terminei minha corrida e tu estás começando. Dá tua contribuição para a civilização do amor, porque não há outra, não há civilização da tecnologia, do poder ou das armas. Meus irmãos cristãos são muito queridos para mim, eu sei, mas igualmente são queridos para mim todos os homens e mulheres deste mundo. Sou feliz por ter vivido neste mundo. Na memória de toda a minha vida nunca vi uma pessoa desagradável, um país que me desagradasse. Tudo na criação é uma dádiva de Deus. Em cada um de nós há algo bom; se cada um de nós for bom, fico feliz, mas se ele não for bom, ainda assim é meu irmão, eu o amo. Aperto bem a sua mão e caminhamos juntos em direção à civilização do amor. [...] Em comunhão com os homens e mulheres de boa vontade pertencentes a todas as nações, convivo como amigo e sinto que, de fato, com a contribuição de milhares de mulheres e homens de todas as raças, caminhamos em direção à mais plena unidade da família humana; um só Pai, um só Redentor, uma só Mãe Santíssima, um só Pastor universal, um só olhar dirigido aos céus eternos.
Tornar-se capaz de amar dessa maneira é a oração que dirijo a Jesus para cada pessoa que vive neste mundo.
Vaticano, 3 de julho de 2024
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