“Testemunhas, não funcionários”, um livro para os sacerdotes num mundo em mudança
Salvatore Cernuzio – Pope
São citados Kierkegaard, Camus, Nelson Mandela e Martin Luther King, mas também Calimero, o famoso pintinho da animação italiana-japonesa que com sua exclamação "É injusto" é o emblema de um comportamento lamentoso que não busca soluções ou propostas. Fala-se também sobre modéstia e paternidade, tédio e estratégias políticas, a saga dos out (burn out/bore out/brown out) e se olha para a atualidade: do “voyeurismo” das redes sociais aos novos hábitos ditados pela pandemia. Tudo isso inervado por citações bíblicas e pelo magistério da Igreja, em particular por Bento XVI e Francisco, para aprofundar a própria essência do sacerdócio através de seus pontos fundamentais, vocação e missão, e suas tentações mais graves. Começando por ser "funcionários" em vez de "testemunhas" e "portadores de vida".
O texto assinado por François-Xavier Bustillo, franciscano conventual, bispo de Ajaccio, na Córsega desde 2021, é uma análise gostosa e lúcida. "Testemunhas, não funcionários. O sacerdote na mudança de época" é o título do livro, publicado pela Livraria Editora Vaticana. O Papa Francisco deu uma cópia a cada um dos sacerdotes presentes na manhã, desta quinta-feira (14/04), na Basílica de São Pedro para a Missa do Crisma. Folheando as mais de 230 páginas do livro, entende-se os motivos. Com um olhar moderno, linguagem imediata, preparação sólida e uma rica anedótica, Bustillo, teólogo e pastor, propõe uma reflexão fundamentada sobre o tema sempre complexo do sacerdócio, à luz das transformações - em alguns aspectos, revoluções - que correm rapidamente no mundo de hoje.
Uma longa carta pastoral
No entanto, seria errado considerar o volume como uma espécie de "manual do bom sacerdote": o texto mais parece uma longa carta pastoral em que o autor sempre fala usando o "nós", querendo questionar-se a si mesmo. E também querendo esclarecer alguns pontos no que diz respeito à opinião pública que muitas vezes é muito crítica em relação ao clero. “Um sacerdote não entra na Igreja porque decidiu fugir de um mundo cruel e complicado, encontrando nesta instituição o conforto de uma vida mais fácil”, escreve o bispo.
A "cidadela sitiada" e a síndrome de Calimero
Olhando para os ataques contra a Igreja, Bustillo destaca duas reações desencadeadas nos sacerdotes e que deveriam ser evitadas. A primeira é a da “cidadela sitiada”: “Diante desses ataques que nos ferem, reagimos com uma solução primária de proteção: levantamos muros e nos protegemos. Como na mentalidade tribal, protegemos os nossos e atacamos os outros. Com esta escolha podemos ceder, mais uma vez, à violência e à vingança”. A outra reação é a do "estilo Calimero", ou seja, pensar que tudo "é injusto" e se contentar com uma "atitude pessimista e passiva".
A importância da proximidade dos leigos
A proposta do autor é que "uma nova maneira de ser e agir" possa moldar a missão dos sacerdotes: "Uma colaboração serena e pacífica com todas as forças da Igreja ajudará os presbíteros a avançarem em comunhão". Nesta perspectiva, é interessante a reflexão sobre a importância dos leigos no acompanhamento da vida dos sacerdotes. Bustillo escreve sem muitas palavras: "O sacerdote precisa dos outros para evitar uma vida triste e neurótica". Ele não pode prescindir dos outros sacerdotes, mas também não pode prescindir dos leigos que lhe “trazem uma humana normalidade”: “Nesta comunidade podemos partilhar, conversar, trocar [ideias, ndr], confiar uns nos outros livremente. Esta ligação é fundamental. A vida familiar e profissional dos leigos nos ajuda a ter uma visão mais correta da realidade”. E também incentiva a “não focar em nós mesmos”.
A tentação da administração pública
“Os sacerdotes não são funcionários da instituição Igreja”, diz outra passagem do livro. “Diante de certas dificuldades de gestão - escreve pe. Bustillo - é tentador proteger-se à maneira da administração pública. Assim, os compromissos são limitados a horários fixos e, fora desses horários, não há possibilidade de poder atender”.
Leituras anacrônicas
Uma das sugestões é a de "uma autocrítica saudável": para consigo mesmo, mas também da época atual, porque "as leituras anacrônicas nem sempre são muito frutíferas". "É justo", diz o bispo, "consertar os erros do passado e as opções pastorais ultrapassadas, mas sempre numa abordagem evangélica de respeito e vigilância. Alguns critérios de 'estilo Facebook', por exemplo: 'Eu gosto' ou 'Não gosto' (likes) são um pouco míopes para a sabedoria da Igreja".
A lógica do "mais"
Olhando para os nossos "tempos bastante oportunos para testemunhar", o teólogo afirma que: "A Igreja não precisa de uma conversão cosmética, mas de uma verdadeira conversão da cabeça aos pés". Ele incentiva à "constância e perseverança": "Vivemos numa época em que, sem dúvida, nossas cruzes são pesadas, mas não devemos desistir". Adverte a não cair no "pecado" de deixar "o lado profano ou mundano da sociedade" entrar na forma de viver a missão. "Hoje, o motor de nossa sociedade ocidental é impelido pelas finanças e pela política. O conhecimento, o poder, o fazer e o parecer dominam a forma como existimos no mundo. Nesta perspectiva, apenas os resultados e, claro, bons resultados guiam as escolhas do homem moderno. A força motriz é sempre a do 'mais': o mais forte, o mais rico, o mais capaz, o mais famoso, o mais influente... Esta lógica deve ser promovida na Igreja?".
O "festival da incerteza" gerado pela Covid
O livro não deixa de mencionar a pandemia da Covid que revolucionou projetos, hábitos e estilos de vida: “O homem moderno, acostumado a planejar, gerenciar e organizar tudo, teve que deixar sua agenda de lado”. A crise mundial da saúde causou “um festival de incertezas” e isso, observa Bustillo, na Igreja se traduziu numa revisão total: “Quem poderia imaginar não celebrar juntos a Semana Santa? Casamentos, batizados, primeiras comunhões, funerais, tudo o que compõe nossa vida espiritual coletiva teve que ser revisto”. Na vida do sacerdote, a Covid gerou crises profundas, mas também abriu "uma dimensão existencial e espiritual sem precedentes". O confinamento para muitos foi de fato “um tempo precioso para meditar sobre o sentido da vida”.
Prefácio assinado pelo padre Epicoco
Enriquece o poliédrico volume o prefácio do pe. Luigi Maria Epicoco, assistente eclesiástico do Dicastério para a Comunicação, que identifica um ponto focal da obra: “Muitas vezes, nas últimas décadas, assistimos a uma série de mal-entendidos que diziam respeito à esfera essencial da vida espiritual, ora reduzida ao psicologismo, ora ao espiritualismo desprovido de concretude existencial. Devemos voltar a fixar o olhar em Jesus para encontrar a síntese maravilhosa do que é plenamente humano e por isso plenamente adequado ao ministério sacerdotal: a comunhão com o Senhor é o coração do nosso ministério”.
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