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Garimpo e barbárie: uma história de genocídio e de luta dos Yanomami

O artigo é de Gabriel Vilardi: Os Yanomami sabem o que querem, já as autoridades federais não parecem ter tanta certeza... “Existe um ambiente de desumanização que cala na alma, em que a agonia e a dor são expressão de uma morte logo ali adianteâ€.

Gabriel Vilardi - jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte).

Na Abya Yala amplamente cristã a mera (re)existência dos  se revela contracultural e antissistêmica, portanto intolerável para as sempre velhas e inamovíveis elites coloniais, adoradoras do deus-mercado. Um continente perpassado por massacres, genocídios e sistemáticos apagamentos culturais. E entre esses povos crucificados encontra-se o Povo Yanomami, para quem “sobreviver é a maior dificuldade e a morte lenta o destino mais próximoâ€, como já ensinava o teólogo jesuíta .

Para aprofundar a dimensão do já tão denunciado – porém, infelizmente, com pouca efetividade prática – genocídio Yanomami, aconteceu o debate , promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, com a participação da irmã religiosa da Consolata, , do advogado do  (CIR) Ivo Macuxi e do membro do Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), . Durante pouco mais de duas horas os convidados puderam trazer sua experiência e reflexões críticas a partir de uma vivência comprometida de todos com a causa indígena. Vale a pena retomar a exposição gravada e destrinchar a complexidade do cenário esboçado.

Sem deixar de reconhecer que “o início do processo da foi um passo fundamental que o atual governo deu, apesar de ainda inconclusoâ€, assim como a importância do “fornecimento de alimentação para as crianças com â€ e “a retomada do â€, Ivo Macuxi expôs com clareza a dramaticidade enfrentada por seus parentes.

Afinal, como pontuou com lucidez, sendo um dos sucessores de  no departamento jurídico de uma das , possui consciência de que o papel do movimento é cobrar o governo para que cumpra suas obrigações constitucionais. Ainda que dificilmente a maioria das relações entre os atuais ocupantes de funções públicas, com suas antigas organizações sociais, estejam construídas com esse nível de consciência.

“O que precisa avançar é garantir um efetivo plano de segurança para a , assegurando a proteção das comunidades e das equipes de saúde, com a implantação de bases de proteção territorial em pontos estratégicosâ€, afirma o advogado indígena. Mas isso deve ser feito, frisa com sabedoria, sempre a partir do “diálogo com organizações indígenas e indigenistas, porque sozinho, sem escutar as lideranças, o governo não conseguirá solucionar o problemaâ€, como se tem constatado pelos terríveis diagnósticos. Nas disputas fratricidas dos representantes do poder público, embebidas de uma sufocante vaidade, a escuta franca e de qualidade é a primeira a ser sacrificada, em nome de projetos pessoais egoístas a despeito de coletividades inteiras.

Citando a recente decisão federal de criar um centro de coordenação avançado na capital Boa Vista, avisou com a cautela própria de seu Povo Macuxi: “precisamos ver se as pessoas que estarão à frente da , em Roraima, terão conhecimento das especificidades da realidade Yanomamiâ€. Porque, prossegue certeiro, “percebemos que alguns cargos-chave estavam sendo ocupados por pessoas que desconhecem as questões dessa realidadeâ€, como “inclusive a própria ministra reconheceu, equívocos foram cometidos na gestão da resposta governamentalâ€. Um exemplo citado, que deve ser no mínimo desconcertante para as autoridades, foi “a â€, o que, além de não ter matado a fome dos subnutridos, gerou desperdício de recursos públicos.

Em seguida, vivendo há mais de 20 anos no território Yanomami, a  partilhou suas angústias pelo genocídio visto de perto, sem deixar de reafirmar sua admiração pela força desse “povo da esperança, que não se deixa abater e pisando esse chão de , quer viver e viver bemâ€! O poderoso Bem Viver dos Povos Indígenas.

Profunda conhecedora da espiritualidade e cosmologia do povo que segura o céu, contou que compreende sua missão como um seguimento ao trabalho iniciado pelos seus companheiros e companheiras da Consolata, em 1965, com a fundação da . Entre eles, vale destacar o incansável e apaixonado, Irmão Carlo Zacquini, que dedicou mais de 50 anos de sua vida a se fazer Yanomami com os Yanomami. Essa instigante história de amor e compromisso entre as irmãs, os padres, os irmãos da Consolata e o Povo Yanomami está valiosamente registrada no livro de , O encontro Nohimayou. Memórias da Missão Catrimani: construindo relações de alianças com o povo Yanomami.

A Irmã Mary Agnes recuperou, ainda, a memória da catastrófica construção da Perimetral, nos anos 1970 e a terrível onda garimpeira dos anos 1980, recordando a profética presença da  nesses momentos tão duros e difíceis. A estimativa de indígenas mortos nessa época passava de 2.500 Yanomami, complementou Roberto Liebgott. Como não lembrar um dos maiores bispos da Amazônia de todos os tempos, o saudoso, que certa vez apontou para a refratária sociedade roraimense o “privilégio que era ter o Povo Yanomami em seu meioâ€?

“Quando cheguei nos anos 2000â€, segue a religiosa, “o objetivo era investir na formação dos Yanomami, para que fossem protagonistas da sua história, tanto na saúde quanto na educaçãoâ€. Métodos paternalistas não serviam mais, segundo o novo proceder do CIMI, mas sim a busca pela conscientização dos povos. Para tanto se valeu de sua formação como enfermeira e pôde “colaborar na preparação de novos agentes indígenas de saúde (AIS) e dos microscopistas, que faziam a busca ativa da malária com seus microscópios nas próprias malocasâ€. Com a mais recente invasão garimpeira, os índices de malária explodiram novamente, castigando de forma cruel os donos da terra.

Como testemunha de uma história de muita luta, partilhou ter visto “o , na busca pelos seus direitos, entre elas a Hutukaraâ€, dirigida pelo grande xamã Davi Kopenawa. Mas a volta intensa dos garimpeiros foi como um triste pesadelo, tendo impactado fortemente os jovens e a levado a se perguntar: “o que está acontecendo com o povo da esperança, o povo dos sonhos? Uma mudança muito grandeâ€.

Então, resolveu estudar o genocídio e passou a compreendê-lo como “a morte dessa grande árvore da identidade†de um povo. “Até hoje escuto na radiofonia que existem postos de saúde fechados, há mesesâ€, denuncia indignada. “As pessoas espalhadas pelo território estão sem assistência e eu vivo isso com angústia, porque não posso chegar às outras comunidadesâ€, conclui a missionária.

Fazendo referência ao Carnaval, lembrou do samba-enredo da Salgueiro que gritou a resistência do povo Yanomami e, como boa conhecedora dessa língua, explicou:  â€“ eu estou vivo, presente, resisto. Ao trazer a barbárie vivida nos últimos anos, a missionária indigenista insiste na importância do protagonismo das lideranças indígenas, em um longo caminho que vem sendo construído há décadas: “seis meses depois da declaração de emergência sanitária aconteceu o , e seu documento final é muito claro: ‘é preciso retirar os garimpeiros, controlar os avanços da malária e reconstruir o sistema de atendimento da saúde para que possamos retomar nossas vidas’â€. Entenderam?

Os Yanomami sabem o que querem, já as autoridades federais não parecem ter tanta certeza... “Existe um ambiente de desumanização que cala na alma, em que a agonia e a dor são expressão de uma morte logo ali adianteâ€, vaticinou o indigenista do CIMI, que não nega a sua reconhecida veia poética.  recuperou a desastrosa – para ficar por aí – gestão do então presidente da FUNAI, Romero Jucá, em que expulsou os missionários indigenistas das terras indígenas, para evitar as sucessivas e corajosas denúncias de violações dos Direitos Humanos desses povos.

Como se não bastasse, para não ficar devendo às piores histórias de terror, mesmo após a vitoriosa demarcação da Terra Indígena, em 1992, no ano seguinte ocorreu o covarde , com ampla repercussão internacional, graças aos relatos das religiosas da . “Os Yanomami estão sendo agredidos há décadas e não há nenhuma perspectiva por parte do Estado brasileiro de pôr fim a essas violaçõesâ€, constata Liebgott.

Para que bem se compreenda o nível de gravidade do genocídio, foi durante o famigerado governo Bolsonaro que se promoveu um novo estímulo ao garimpo, mas agora com o agravante dessa atividade ilícita contar com o apoio e controle do crime organizado, inclusive de narcotraficantes. Expôs que, apesar da atual administração ter envidado “esforços e boas intenções, não conseguiram fazer cessar as agressõesâ€, uma vez que “existem freios que impedem que as coisas avancem, porque uma parcela de genocidas que compõe o atual governo também estava no anteriorâ€.

Como tão bem analisou o experiente missionário do CIMI, avançar implica em “unir esforços para que os freios sejam retirados e essa situação mudeâ€, responsabilizando “não só os garimpeiros que invadem o território, mas especialmente todos aqueles que financiam, assessoram e dão amparo a essa invasãoâ€. Acrescentemos aí as altas autoridades que lucram com essa indústria da morte.

Disputas por protagonismo e ciúmes infantis entre os agentes estatais que integram o campo democrático, e precisam travar embates com os anti-indígenas que compõem o governo, só postergam qualquer solução e minam cada vez mais um já combalido Povo Yanomami. Haverá espaço para união e trabalho conjunto entre os poucos, mas esperados aliados da causa indígena ou os egos e interesses outros se sobreporão ao grito “ya temí xoaâ€?

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07 março 2024, 12:51