Bento XVI: sua Carta aos católicos chineses uma obra-prima de lucidez
Pope
O Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, bispo emérito de Hong Kong, também estava presente no funeral de Bento XVI, nesta manhã (05) no Vaticano. O cardeal de 90 anos - condenado há algumas semanas ao pagamento de uma multa em um julgamento no qual foi invocada a Lei de Segurança Nacional draconiana - teve seu passaporte devolvido pelo juiz por quatro dias para que pudesse viajar para Roma. Ele foi criado cardeal pelo próprio Bento XVI em 2006. E o idoso cardeal chinês recordou sua figura em um post publicado em italiano em seu blog nas últimas horas, expressando grande gratidão a Bento XVI por "defender a verdade contra a ditadura do relativismo", mas também por sua Carta aos católicos chineses de 2007 e seus esforços para melhorar a situação da Igreja na China. "Ele não podia aceitar um compromisso qualquer", escreve Zen. "Ainda estou convencido de que todo esforço para melhorar a situação da Igreja na China deve ser feito na linha da Carta de 2007.
A análise do missionário sinólogo padre Criveller
Sobre a importância deste documento do magistério de Bento XVI e o quanto significaram para a China os oito anos de seu pontificado, publicamos abaixo a análise do Padre Gianni Criveller, missionário PIME e sinólogo. Bento XVI - seguindo as pegadas de João Paulo II – colocou a melhoria das relações com a China e o apoio aos católicos chineses entre os objetivos importantes de seu pontificado:
Como cardeal Joseph Ratzinger já tinha feito uma importante viagem a Hong Kong em março de 1993, para se encontrar 25 bispos das comissões doutrinais das Conferências Episcopais Asiáticas. Na ocasião ele fez um discurso fundamental sobre a inculturação, propondo o termo interculturalidade para descrever a complexa relação entre o Evangelho e as culturas. Naquela viagem, cardeal Ratzinger também visitou Macau. O então sacerdote John Tong, hoje cardeal, também o acompanhou ao Pico de Hong Kong, o ponto montanhoso que oferece uma vista espetacular da cidade.
Os dois cardeais chineses nomeados por Bento
Quando se tornou Papa Bento XVI, nomeou dois cardeais, bispos de Hong Kong. Em 2006, foi nomeado cardeal o salesiano Joseph Zen "a consciência de Hong Kong", com quem o Papa Bento XVI tinha uma forte e significativa relação pessoal. O Papa também lhe confiou as meditações da Sexta-feira Santa na Via-Sacra de 2008. Na época o cardeal Zen escreveu: "Neste convite, reconheci o desejo do Santo Padre de mostrar sua preocupação pessoal com o grande continente asiático. E em particular, para incluir neste solene ato de piedade cristã os fiéis da China, que têm uma profunda devoção à Via-Sacra. O Papa queria que eu levasse ao Coliseu a voz desses nossos irmãos e irmãs ". Em 2012, foi a vez do bispo John Tong de ser criado um cardeal. E com a força desta escolha do Papa Ratzinger, o novo cardeal Tong - agora com 83 anos de idade - foi o primeiro cardeal chinês a participar de um conclave em 2013.
Matteo Ricci
Bento XVI também foi um profundo conhecedor de Matteo Ricci. Ele apoiou sua causa de beatificação, delineando com competência as qualidades missionárias de Ricci: "É justamente enquanto leva o Evangelho", afirmou em 29 de maio de 2010 por ocasião do quarto centenário de sua morte, "que Ricci encontra em seus interlocutores a exigência de um confronto mais amplo, para que o encontro motivado pela fé se torne também um diálogo entre culturas; um diálogo desinteressado, livre dos objetivos do poder econômico ou político, vivido em amizade".
A histórica Carta aos católicos chineses
Bento XVI foi o autor da histórica , publicada em 30 de junho de 2007. É uma Carta eclesial, endereçada diretamente aos católicos, e não às autoridades governamentais. Não é uma carta política, mesmo que tenha implicações políticas. No texto, o Papa expressa sua esperança no diálogo entre as autoridades da República Popular da China e a Santa Sé: a Igreja ensina os fiéis a serem bons cidadãos em seu país e pede às autoridades que não dificultem assuntos que dizem respeito à fé e à disciplina da Igreja. Bento XVI pede às autoridades que reconheçam os bispos clandestinos. No entanto, ele admite que "quase sempre" os bispos oficiais são obrigados a "adotar atitudes, fazer gestos e assumir compromissos que são contrários aos ditames de sua consciência". Os bispos deveriam ou não aceitar o reconhecimento por parte das autoridades civis? O Papa deixa ao critério de cada bispo a determinação do caminho a seguir em suas específicas situações.
Unidade entre as comunidades
A Carta aos católicos chineses é uma carta escrita por um homem de Igreja, que descreve como é a Igreja. Ela tem um fundamento e uma estrutura que vale para sempre e em toda parte, sem os quais a Igreja não é mais ela mesma. Os fiéis da China têm o direito de fazer parte dela plenamente. O Papa pede unidade entre as comunidades abertas e as clandestinas para uma Igreja fiel, livre, capaz de testemunhar a verdade, de acolhida e de perdão. "Verdade e amor", são temas do programa de seu pontificado, são os dois pilares sobre os quais o Papa escreve sua longa e articulada Carta. Bento declara amor e respeito pelo povo chinês, sua história e cultura. Não pede privilégios às autoridades, mas liberdade. O Papa recorda que a liberdade religiosa faz parte dos direitos humanos incluídos nas Convenções Internacionais assinadas pela China.
Perseguições
Meditando sobre as páginas do Apocalipse, Bento XVI compartilha a perplexidade dos cristãos pelo silêncio de Deus diante das perseguições. Bento convida os católicos a não se fecharem em si mesmos: se a Igreja rejeita a interferência do poder político, ela não busca a clandestinidade, mas o testemunho público, o bem comum, a unidade dos crentes, a comunhão visível com a Igreja universal e com o sucessor de Pedro. A Igreja na China, apesar de suas dificuldades, tem a mesma missão de toda a comunidade eclesial: a evangelização. Na Carta, o Papa aboliu algumas faculdades extraordinárias concedidas à Igreja clandestina durante as décadas da perseguição: a possibilidade, em caso de necessidade, de ordenar bispos mesmo sem um mandato papal. Por fim, ele decretou que 24 de maio, a festa de Maria Auxiliadora e o santuário mariano nacional de Sheshan (Xangai) se torne o Dia de Oração pela Igreja na China. Essa data se tornou um evento vivido com muita participação das comunidades chinesas, especialmente as da diáspora.
Obra-prima de lucidez
Bento teve muita coragem, entrando em um campo complexo e cheio de armadilhas. Os especialistas, por mais que estivessem informados sobre os assuntos da China, ofereceram ao Papa opiniões discordantes, em certas circunstâncias, assim como os próprios católicos da China discordavam entre si. O Papa manifestou o seu pensamento, criando o que alguns julgam ser uma pequena obra-prima de lucidez, equilíbrio e delicadeza. Os católicos, das comunidades abertas e das clandestinas, apreciaram muito a Carta que lhes foi destinada. Os católicos, incluindo os de Taiwan, Hong Kong e Macau, apreciaram o esforço do Papa para compreender a situação, para simpatizar, para oferecer linhas claras e sustentáveis, sem condenar ou aceitar que a liberdade da Igreja seja pisoteada.
Situação atual
Quinze anos se passaram e nos perguntamos se a Carta deu os frutos desejados. Seu sucessor, o Papa Francisco, em 2018 assinou um Acordo pastoral provisório com as autoridades civis, renovado em 2020 e 2022, precisamente sobre a delicada questão da nomeação dos bispos. Segundo algumas fontes, o Acordo estava na reta final já em 2009, mas o Papa Bento XVI parou o bloqueou da assinatura, e ainda não está claro o porquê. O que é certo é que a Carta de Bento XVI permanece uma etapa fundamental na história da Igreja chinesa. Ela contém a semente para a realização da unidade e da liberdade da Igreja. Algo mais foi alcançado no caminho da unidade, mas a liberdade religiosa ainda não existe. Apesar do Acordo de 2018, ainda há muitos passos a serem dados.
(com AsiaNews)
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