Alemães se comovem pela perda do conterrâneo Ratzinger
Luiz Felipe Bolis – Pope
Ao saber do falecimento do Papa emérito Bento XVI (1927-2022), Hansi von Bayern selou nas terras do coração as mesmas pegadas que Ratzinger trilhou desde a região alemã da Baviera até os braços do Vaticano. Preparado para peregrinar doze horas de estrada já nos primeiros dias de 2023, o alemão se despediu da esposa, da família e dos amigos. A pequena cidade de Westhausen testemunhou a grande determinação e o sentimento de saudade pela perda de um conterrâneo que motivaram o músico de 32 anos a seguir a caminho de Roma.
Em suas bagagens, Hansi reservou o melhor espaço para os trajes folclóricos e os instrumentos que transmitem ao mundo a verdadeira imagem da cultura alemã. O Tenorhorn brilha diante dos seus olhos como uma trompa muito particular da música de seu país, na companhia da caixa box que auxilia na distribuição do som feito pela trompa. “Eu utilizo apenas um instrumento para tocar a canção inteiraâ€, pontua.
Montes, castelos, rios, igrejas, comunidades, fé, folclore, cerveja local, pessoas. Os olhos de Hansi se alegram por compartilharem as mesmas impressões que os de Bento XVI em todos os anos de vivência na Baviera, um dos dezesseis estados federais da Alemanha. Mas é sobretudo na capela interior da alma que ambos, o papa falecido e o músico, compartilham uma mesma via pela qual contemplar a beleza da vida: a dimensão musical.
Sobre o coração de Hansi, uma pulsante paixão pela música, esse universo que para ele e para o seu querido Ratzinger exprime tudo o que palavras não podem manifestar. Pelas melodias de uma nova canção no peito e sobre quilômetros cada vez mais próximos ao destino final: o velório e Santa Missa exequial do Papa emérito, o fiel trazia consigo desejos por uma Igreja mais unida a povos de todas as nações, crenças e diferentes realidades sociais.
Os pés de Hansi finalmente passam pelo controle de segurança e tocam a Praça São Pedro. Apesar de ser um entre outros 50 mil que, segundo as estimativas oficiais, ocupam a Praça, o alemão não passa despercebido em virtude da autêntica personalidade com a qual veste o seu externo e sobretudo a postura do seu interior.
O chapéu verde exibe medalhas, condecorações e uma pena unida a um pincel que a tradição alemã chama de gamsbart, enquanto a bermuda marrom traz bordados verdes, majoritariamente em forma de folhas. Para Hansi não existem dúvidas de que, acima dos homens da terra, muito antes de pensar em viajar para Roma o próprio Deus já o havia enxergado em toda a sua essência e o encaminhado a um propósito na Cidade Terra.
Silêncio, frio e comoção selam a alvorada do dia 05 de janeiro de 2022. A voz do povo sublinha as mesmas palavras sobre vários dialetos: “hoje é um momento históricoâ€. Logo uma neblina embranquece todo o céu e esconde a cúpula da Basílica de São Pedro. Os últimos atos da homenagem pública a Bento XVI reúnem três “dedicações†explanadas pelo Papa Francisco: uma agradecida pelo serviço ao Senhor e ao povo, outra dedicação orante e uma última dedicação sustentada pela consolação do Espírito. É simplicidade o que se contempla ao redor.
“O que mais me impressiona em Bento XVI é o amor dele a Deus, os seus últimos trabalhos e especialmente o YouCat, que ele mesmo produziu, nos ajudando a descrever o que é ser católico e como ensinar outros através deste Catecismoâ€, afirma Hansi. A Santa Missa segue com a palavra e a Eucaristia, na presença de mais de 120 cardeais, 400 bispos e quase quatro mil sacerdotes, além de presidentes, representantes de realezas, chefes de estado e governantes.
Hansi acompanha toda a celebração do lado esquerdo da Praça São Pedro. Vê o caixão de madeira, simples, posicionado diante do altar, sobre o qual foi apoiado o Evangelho aberto. Vê o presépio no centro da multidão em plena véspera de Solenidade da Epifania do Senhor e Dia de Reis. Vê a vida que vence a morte. Não só vê, como também sente, fala, ouve, respira, toca e acompanha com todos os sentidos o fato que repercute aos olhos do mundo inteiro. O corpo de Bento XVI é aclamado por toda a gente, recebe um último olhar do Papa Francisco e é levado para dentro da Basílica de São Pedro para ser sepultado nas grutas vaticanas, dentro do túmulo que antes pertencia a São João Paulo II.
É chegada a hora de partir. A Praça São Pedro vai se esvaziando da presença dos milhares de participantes, à medida que, ainda sobre o mesmo lugar, Hansi mantém o seu corpo estático por dez minutos de profunda meditação, totalmente focado na grande tela da transmissão. Sobre os cliques do seu silêncio e da sua interiorização, ele vai preenchendo o arquivo da alma com as fotografias do amor. Sobre o telão da sua vida, ele assiste às retrospectivas do passado e do presente.
Chega o momento em que o músico, tão acostumado a transbordar sorrisos, nota que agora correm muitas lágrimas de seus olhos. Hansi chora. E o faz como um gesto de solidariedade pelo mundo, pelos fiéis e sobretudo pelo seu amado povo da Baviera.
Hansi chora a morte de um conterrâneo, de um irmão, de um amigo e de um pai. As lágrimas de um músico são, na verdade, um canto repleto de condolências, pesar e dor. E desse canto, o verdadeiro músico faz oração, intercedendo por todos e em todos os cantos do mundo. E de tamanha beleza em seu cantar o músico transmite esperança. Esperança essa que as palavras de Bento convidaram a semear, em discurso de 2008, no coração humano “tão marcado e por vezes ferido pela condição terrenaâ€. O que sai das verdades de Hansi é “Magnificatâ€, a gratidão e o louvor entoados em virtude da vida e dos feitos de Bento XVI, a exemplo da Virgem Maria.
“Foi muito tocante, porque para mim a música representa muito. Eu e o meu grupo musical estivemos justamente aqui em 2007, porque o próprio Papa Bento nos convidou e mais outros grupos da Áustria, Suíça, uns quinze artistas e grupos musicais de todas as partes, e nós da Baviera. Eu vim com o meu pai e as minhas irmãs. Eu e os grupos tocamos aqui por Roma vestidos com nossas roupas tradicionais, e foi um sentimento tão maravilhoso o de poder unir a fé e a música aqui. Estar, naquele tempo em que eu tinha 17 anos, em Roma com os meus amigos, trinta músicos, a minha família, então tudo isso me toca muito. E agora ver que eu estou aqui rezando, Bento está morto e eu aqui sozinho sem família, amigos ou grupo musical é realmente...â€, as reticências de Hansi falam por si só. Ele finaliza com um “yah!â€.
Sobre os muitos idiomas enraizados nas terras de Babel, o inglês é a língua intermediária entre o entrevistado que fala alemão e o repórter que tem como base o português abrasileirado. Mas Hansi é um homem que comunica muito mais do que tão somente por palavras. Um sorriso, um silêncio ou uma canção refletem os seus passos sobre as águas pelas quais o Senhor o chama a atravessar. “Há muito trabalho a se fazer com a música e evangelizar as duas partes: tanto nas celebrações como fora, na Igreja em saídaâ€, comenta o alemão.
São três as fontes da música ensinadas por Bento XVI como herança e constantemente visitadas pela sede de renovação do músico Hansi von Bayern: a experiência do amor, a experiência da tristeza e o encontro com o divino. Através de uma experiência pura e verdadeira com o Amor, Hansi semeia a pureza espiritual em seus cantos.
Ele segura o Tenorhorn em mãos, liga a caixa de som e dá vida ao belo: à melodia de uma canção folclórica, à música mensageira que comunica o encanto da vida humana a cada coração e que faz deste pequeno espaço na Praça São Pedro lugar de contemplação. Hansi devota o seu tributo a Deus e a Bento XVI, e nas entrelinhas do seu gesto expressa o mesmo ato de humildade que tanto o desperta admiração por Bento XVI, o servir ao outro, o colocar-se em discrição para ser visto primeiramente por Deus, e como ele mesmo diz: “um passo para trás como forma de impulso que nos leva a dar dois passos para frenteâ€. Aplausos voam nos ares de Roma para Hansi. Aplausos para o homem que tocou a mesma terra e saciou todas as sedes humanas e espirituais na fonte bavariana de Bento XVI.
Três mulheres partilham admiração por Bento
O apostolado de Joseph Ratzinger, ordenado sacerdote em 29 de junho de 1951, sempre despertou alegria em Anna Rösl, de 28 anos, e também em sua mãe Elisabeth Rösl, de 62 anos, e em sua prima Silvia Piehler, de 50. Vindas da região alemã da Baviera, mais especificamente da cidade de Regensburg, as mulheres organizaram a viagem espontaneamente há três dias para dar o último adeus ao conterrâneo Ratzinger.
“Eu gostaria que muito mais bavarianos pudessem vir a Roma para dizerem adeus tambémâ€, expressa Anna, emocionada. Duas fortes palavras crescem no coração da jornalista, que há seis anos realizou um estágio na redação alemã da Rádio Vaticano: “Santo Subito!â€, confessando o desejo pelo processo de beatificação e canonização de Bento XVI. Embora ela reconheça que muitos alemães não aprovem Ratzinger em virtude dos escândalos eclesiásticos que surgiram em seu Pontificado, um número não tão considerável em comparação aos que o amam, segundo ela, Anna espera que o Papa emérito possa ser um dia mais compreendido por suas decisões.
Da voz de Elizabeth e Silvia escapam depoimentos em alemão, os quais a jovem Anna traduz em inglês sobre as linhas de uma única frase aclamada pela mãe e pela prima: “quem acredita em Deus nunca está sozinhoâ€. Junto ao Papa Francisco, elas rezam com as seguintes palavras: “’Pai, nas tuas mãos entregamos o seu espírito’. Bento, fiel amigo do Esposo, que a tua alegria seja perfeita escutando definitivamente e para sempre a sua voz!â€.
Mais detalhes da vida, obra e post mortem de Joseph Ratzinger podem ser acessados neste artigo publicado pelo Pope: /pt/vaticano/news/2023-01/bento-xvi-funeral-rogito-moedas-palios.html.
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