Cardeal Orani: a nova ±ð²Ô³¦¨ª³¦±ô¾±³¦²¹ social ¡°Fratelli tutti¡± (III)
Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ - Pope
Reflitamos sobre os capítulos 3 e 4 da nova encíclica ¡°Fratelli tutti¡±: a fraternidade e a amizade social, do Papa Francisco. Espero despertar em cada um o gosto pela leitura integral desse precioso documento.
Recordo, a título de contextualização, que no capítulo I, intitulado ¡°As sombras de um mundo fechado¡± (n. 9-55), o Santo Padre expôs algumas tendências do mundo atual que atrapalham ou mesmo impedem a fraternidade universal. Deixou de lado, por um tempo, esses questionamentos para iluminar sua reflexão com a parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Eis que, agora, no capítulo III, cujo título é ¡°Pensar e gerar um mundo aberto¡± (n. 87-127), o Papa como que se volta para as respostas aos desafios por ele recolhidos no capítulo II. Acompanhemos com atenção.
É preciso amar de verdade e concretamente, diz o Papa: ¡°O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude ¡®a não ser no sincero dom de si mesmo¡¯ (Gaudium et spes, 24) aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: ¡®Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro¡¯ (Gabriel Marcel, Du refus à l¡¯invocation (Paris 1940), 50). Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que ¡®a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte¡¯ (Francisco, Alocução do Angelus (10 de novembro de 2019): L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/XI/2019), 3)¡± (n. 87). Aliás, a) ¡°o individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade¡± (n. 105) b) mesmo na defesa da verdade, devemos agir com amor, pois ¡°o maior perigo é não amar (cf. 1Cor 13,1-13)¡± (n. 92).
O que foge disso tudo está, via de regra, mais voltado a si mesmo do que ao próximo e pode ser doentio: ¡°A pessoa humana, com os seus direitos inalienáveis, está naturalmente aberta a criar vínculos. Habita nela, radicalmente, o apelo a transcender-se a si mesma no encontro com os outros¡± (n. 111). Até mesmo em nível micro, nas comunidades, ¡°os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um ¡®nós¡¯ contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção¡± (n. 89). Ninguém deve se isolar, somos ¡°todos irmãos (Mt 23,8)¡± (n. 95). Aqui entra o racismo: ¡°um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita¡± (n. 97). Nesse contexto, quem ama os que com ele convivem numa comunidade local, deverá amar também os de mais longe: é assim o exercício da fraternidade universal (cf. n. 99-104). Sim, pois ¡°todo ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental¡± (n. 107). Somos, portanto, chamados a dar o melhor aos outros na verdadeira solidariedade (cf. n. 112 e 114), sem nos esquecermos do cuidado para com a ¡°casa comum¡±, conforme foi longamente tratado na Laudato Si, e com o uso correto da terra.
Sobre a terra, em especial, escreve o Pontífice: ¡°Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: ¡®Deus deu a terra a todo gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém¡¯ (Centesimus annus (1 de maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831). Nesta linha, lembro que ¡®a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada¡¯ (Carta enc. Laudato si¡¯ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884). O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o ¡®primeiro princípio de toda a ordem ético-social¡¯ (Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de 1981), 19: AAS 73 (1981), 626), é um direito natural, primordial e prioritário (cf. Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172). Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, ¡®não devem ¨C como afirmava São Paulo VI ¨C impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização¡¯ (Populorum progressio (26 de março de 1967), 22: AAS 59 (1967), 268). O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática¡± (n. 120; cf. n. 124).
Francisco louva os empresários em seus esforços, porém também os desafia: ¡°Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria, especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas¡± (n. 123). Afinal, só ante uma lógica que considera a dignidade humana é possível sonhar com e ter um mundo melhor (cf. n. 123).
No capítulo IV, cujo título soa ¡°Um coração aberto ao mundo inteiro¡± (n. 128-153), o Papa se volta, por primeiro a um problema que lhe é muito especial: o dos migrantes. Para o Santo Padre o ideal seria ninguém deixar a sua terra natal, mas se, forçado por algumas circunstâncias específicas, as pessoas tiverem de buscar outras regiões, que vigore para elas a fraternidade universal: onde quer que esteja ou vá, encontre irmãos e irmãs capazes de lhes aplicar concretamente quatro verbos: ¡°acolher, proteger, promover e integrar¡± (n. 129). A quem já se encontra instalado em um lugar faz algum tempo, importa que lhe seja reconhecida a cidadania, ou seja, a pertença legal à população local (cf. n. 131); ele há de ser um dom para ela, pois sempre traz algo novo (cf. n. 133).
¡°As várias culturas, cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas para que o mundo não fique mais pobre. Isso, porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades¡± (n. 134 e 148). Nesse cenário, ¡°a ajuda mútua entre países acaba por beneficiar a todos¡± (n. 137), dado que ¡°hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população¡± (n. 153). Isso tudo sem perder, é certo, a identidade local (cf. n. 142) à luz de intercâmbios sadios e enriquecedores (n. 144). Nessa perspectiva, não cabem os ¡°narcisismos bairristas que não expressam um amor sadio pelo próprio povo e a sua cultura. Escondem um espírito fechado que, devido a uma certa insegurança e medo do outro, prefere criar muralhas defensivas para sua salvaguarda¡± (n. 146). Pensa, assim, o Santo Padre, junto com Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, no bom relacionamento entre o Ocidente e o Oriente (cf. n. 136).
Antes de prosseguir na leitura da Fratelli Tutti, desejo lembrar, a título pessoal, as palavras do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) sobre os muçulmanos, uma vez que a relação entre o Ocidente e o Oriente envolve Cristianismo e Islamismo: ¡°A Igreja olha também com estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração, como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm, por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, a esmola e o jejum. E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens¡± (Nostra aetate n. 3). Neste ponto específico, como fonte de aprofundamento, indico uma obra que trata do Islamismo de modo sério: Religiões: respostas para as perguntas do homem moderno. São Paulo: Mundo e missão, 1998, p. 73-95 (volume I).
Retornando à encíclica, vemos Francisco se volta para a gratuidade cristã que é, em síntese, fazer o bem sem esperar nada em troca. Eis suas palavras sobre a gratuidade: ¡°é a capacidade de fazer algumas coisas, pelo simples fato de serem boas, sem olhar êxitos nem esperar receber imediatamente algo em troca. Isto permite acolher o estrangeiro, mesmo que não traga de imediato benefícios palpáveis. Mas há países que pretendem receber apenas cientistas ou investidores. Quem não vive a gratuidade fraterna, transforma a sua existência num comércio cheio de ansiedade: está sempre a medir aquilo que dá e o que recebe em troca¡± (n. 139-140). É óbvio que ¡°os nacionalismos fechados manifestam, em última análise, esta incapacidade de gratuidade, a errada persuasão de que podem desenvolver-se à margem da ruína dos outros e que, fechando-se aos demais, estarão mais protegidos. O migrante é visto como um usurpador, que nada oferece¡± (n. 141).
Daí afirmar o Papa sobre a interação social: ¡°Esta abordagem exige, em última análise, que se aceite com alegria que nenhum povo, nenhuma cultura, nenhum indivíduo pode obter tudo de si mesmo. Os outros são, constitutivamente, necessários para a construção duma vida plena. A consciência do limite ou da exiguidade, longe de ser uma ameaça, torna-se a chave segundo a qual sonhar e elaborar um projeto comum. Com efeito, ¡®o homem é o ser fronteiriço que não tem qualquer fronteira¡¯ (Georg Simmel, Brücke und Tür. Essays des Philosophen zur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft (Estugarda 1957), 6)¡± (n. 150).
Possam estas reflexões do Santo Padre levar-nos a repensar, à luz do Evangelho, nossa relação com todos os que passam por nós no dia a dia. Peçamos a Deus a graça de sermos realmente acolhedores como manda o Evangelho (cf. Mt 25,35) e recomenda a Regra de São Bento (53,15) citada pelo Papa no número 90 da Fratelli Tutti.
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