Cardeal Orani: A Enc¨ªclica social ¡°Fratelli tutti¡± (V)
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ - Pope
Concluindo as primeiras reflexões e tentando fazer uma pequena apresentação da encíclica ¡°Fratelli tutti¡±, sobre a fraternidade e a amizade social, publicada pelo Papa Francisco, tratando, de modo mais amplo do que nos artigos anteriores, do capítulo VIII ¨C ¡°As religiões ao serviço da fraternidade no mundo¡± (n. 271-287) ¨C, pois trata da nossa vida cristã em diálogo com os demais cristãos e com as outras religiões ¨C na sociedade e a importância da presença da religiosa no mundo.
O Santo Padre assim expõe a linha mestra do capítulo: ¡°As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos da Índia, ¡®o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor¡¯ (Conferência dos Bispos Católicos da Índia, Response of the church in India to the present day challenges (9 de março de 2016)¡± (n. 271). Em outras palavras, no reconhecimento de Deus como Pai, nos vemos todos como irmãos (cf. n. 272). ¡°Para muitos cristãos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada Maria. Ela recebeu junto da Cruz esta maternidade universal (cf. Jo 19, 26) e cuida não só de Jesus, mas também do ¡®resto da sua descendência¡¯ (Ap 12,17)¡± (n. 278).
Sem isso, só há devaneios que, longe de libertar, ameaçam as justas relações entre os homens ou a verdadeira fraternidade: ¡°Nesta linha, quero lembrar um texto memorável: ¡®Se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. (...) A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria¡¯ (São João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 44: AAS 83 (1991), 849)¡± (n. 273).
E mais: ¡°Julgamos que, ¡®quando se pretende, em nome duma ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus direitos violados. Conheceis bem a brutalidade a que pode conduzir a privação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa, e como desta ferida se gera uma humanidade radicalmente empobrecida, porque fica privada de esperança e de ideais¡¯ (Francisco, Discurso no Encontro Inter-religioso (Tirana ¨C Albânia 21 de setembro de 2014): Insegnamenti II/2 (2014), 277; L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 25/IX/2014), 11)¡± (n. 274). ¡°Temos de reconhecer que, ¡®entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes¡¯ (Francisco ¨C Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21). Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os ateus e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria. ¡®Os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora¡¯, mas de fato ¡®são desprezados pela miopia dos racionalismos¡¯ (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123)¡± (n. 275).
É em nome da Lei natural moral que a Igreja tem o direito e o dever de orientar seus fiéis também no campo político. Note-se bem: não se trata da política partidária ou das formas de governo, mas, sim, dos interesses mais nobres do ser humano, ou seja, dos campos da fé e da moral, como bem escreve o Papa: ¡°embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de ¡®despertar as forças espirituais¡¯ (Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 240) que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência (Aristóteles, Política, parágrafo 1253a, linhas 1-3) que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral. A Igreja ¡®tem um papel público que não se esgota nas suas atividades de assistência ou de educação¡¯, mas busca a ¡®promoção do homem e da fraternidade universal¡¯ (Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 11: AAS 101 (2009), 648.). Não pretende disputar poderes terrenos, mas oferecer-se como ¡®uma família entre as famílias ¨C a Igreja é isto ¨C, disponível (¡) para testemunhar ao mundo de hoje a fé, a esperança e o amor ao Senhor, mas também àqueles que Ele ama com predileção. Uma casa com as portas abertas... A Igreja é uma casa com as portas abertas, porque é mãe¡¯ (Francisco, Discurso no encontro com a comunidade católica (Rakovsky ¨C Bulgária 6 de maio de 2019): L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 07/V/2019), 9). E como Maria, a Mãe de Jesus, ¡®queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (¡) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação (Idem, Homilia durante a Santa Missa (Santiago de Cuba 22 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1005)¡± (n. 276).
Mais: A Igreja valoriza a ação de Deus nas outras religiões e ¡®nada rejeita do que, nessas religiões, existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que (¡) refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens¡¯ (Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate, 2). Todavia, como cristãos, não podemos esconder que, ¡®se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher¡¯ (Francisco, Discurso no encontro ecumênico (Riga - Letónia 24 de setembro de 2018): L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 27/IX/2018), 11). Outros bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, ¡®para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos¡¯ (Idem, «Lectio divina» na Pontifícia Universidade Lateranense (26 de março de 2019): L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/IV/2019), 6).
Ainda no campo sociopolítico, ¡°como cristãos, pedimos que, nos países onde somos minoria, nos seja garantida a liberdade, tal como nós a favorecemos para aqueles que não são cristãos onde eles são minoria. Existe um direito humano fundamental que não deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões¡± (n. 279), assim como também ¡°pedimos a Deus que fortaleça a unidade dentro da Igreja, unidade que se enriquece com diferenças que se reconciliam pela ação do Espírito Santo¡± (n. 280). Mais: ¡°Como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspetos da nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro. A verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações¡± (n. 282). Aliás, o fundamentalismo terrorista pode aparecer em qualquer religião pela imprudência de seus líderes (cf. n. 283-284).
E continua Francisco: ¡°Naquele encontro fraterno, que recordo jubilosamente, com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb ¡®declaramos ¨C firmemente ¨C que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram ¨C nalgumas fases da história ¨C da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens (¡). Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas¡¯ (Francisco ¨C Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L¡¯Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 22.)¡± (n. 285).
A longa encíclica, além de lembrar vários líderes de outros segmentos religiosos, conclui fazendo memória do Beato Charles de Foucauld: ¡°O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão (cf. Carlos de Foucauld, Meditação sobre o Pai Nosso (23 de janeiro de 1897): Opere spirituali (Roma 1983), 555-562), e pedia a um amigo: ¡®Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos¡¯ (Idem, Carta a Henry de Castries (29 de novembro de 1901)). Enfim queria ser ¡®o irmão universal¡¯ (Idem, Carta a Madame de Bondy (7 de janeiro de 1902). Assim o designava também São Paulo VI, elogiando o seu serviço: Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 12: AAS 59 (1967), 263). Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amém¡± (n. 287; cf. n. 286).
Possam estes longos, densos e desafiadores ensinamentos do Papa Francisco chegar a cada um de nós que desejamos um mundo mais humano e fraterno como sonharam e viveram, por exemplo, Francisco de Assis e Charles de Foucauld, homens de fé e conduta santa muito valorizados, com justiça, pelo Santo Padre. Que eles intercedam por nós junto a Deus a fim de sermos cada dia melhores e fazermos o mundo também melhor...
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