蜜桃交友

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ - Pope

O capítulo V, com o título 鈥淎 política melhor鈥� (n. 154-197), é um convite muito prático a superar as 鈥渕ás鈥� ou até as consideradas 鈥渂oas鈥� políticas por uma 鈥渕elhor鈥�. Que é essa política melhor? 鈥� É 鈥渁 política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum鈥� (n. 154; cf. n. 176-177) e que vista desta maneira, 鈥�é mais nobre do que a aparência, o marketing, as diferentes formas de maquilhagem mediática鈥� (n. 197). Ela se choca com a forma liberalista e populista de fazer política, que é longamente explanada na 鈥淔ratelli tutti鈥� (cf. n. 155-161). No entanto, o Santo Padre recorda que populismo é diferente de popular, este último vocábulo se aplica apenas a quem promove o bem do povo em geral, não só oferecendo dinheiro aos pobres, mas, sim, garantindo-lhes vida digna. Afinal, 鈥減or mais que mudem os sistemas de produção, a política não pode renunciar ao objetivo de conseguir que a organização duma sociedade assegure a cada pessoa uma maneira de contribuir com as suas capacidades e o seu esforço鈥� (cf. n. 162).

Ainda: são falsamente acusados como 鈥減opulistas quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade鈥� (n. 163); todavia, não pode haver garantias aos sadios direitos particulares sem a presença apoiadora do Estado, dado que 鈥渄e fato, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade, se não estiver sob a tutela da legalidade, dum estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a condição dum mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política鈥� (Paul Ricoeur, 鈥楲e socius et le prochain鈥�, in: Idem, Histoire et vérité (Paris 1967), 122). A verdadeira caridade inclui tudo isso e nada desperdiça do que pode servir 鈥� de verdade e não por interesses escusos 鈥� o próximo. Sim, afirma o Papa que 鈥�às vezes deparamo-nos com ideologias de esquerda ou pensamentos sociais cultivando hábitos individualistas e procedimentos ineficazes, porque beneficiam a poucos; entretanto a multidão dos abandonados fica à mercê da possível boa vontade de alguns. Isto demonstra que é necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres鈥� (n. 165). Também a política econômica ativa, que é necessária, deve ser acompanhada pela solidariedade e confiança mútua, tendo a dignidade humana no centro (n. 168) e o apoio ao chamados 鈥渕ovimentos populares鈥� (n. 169).

Seria importante uma autoridade internacional capaz de garantir a vivência da justiça entendida como o 鈥渄ar a cada um o que lhe é devido鈥� (n. 171). Contudo, 鈥渜uando se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito (Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 67: AAS 101 (2009), 700-701.), não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal. Mas deveria prever pelo menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais鈥� (n. 172). Não se pode esquecer que, na debilidade ou ausência de atuação de Organizações Internacionais, alguns grupos civis têm ajudado a suprir a lacuna (cf. n. 175). Em tudo, no entanto, há de reinar a caridade, síntese de toda lei (cf. Mt 22,36-40). 鈥淓sta caridade política supõe ter maturado um sentido social que supere toda a mentalidade individualista鈥� (n. 182), pois só 鈥渁 caridade pode construir um mundo novo鈥� (n. 183), à luz da razão e da fé, sem relativismos (cf. n. 185). Ainda mais: 鈥淓sta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor鈥� (cf. São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 572-574; Idem, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 11: AAS 83 (1991), 806-807). Sejam pois lembrados os princípios 鈥渄e subsidiariedade, inseparável do princípio de solidariedade鈥� (n. 187) e uma política voltada a 鈥渆liminar efetivamente a fome鈥� (n. 189).

Vem a título de fecho deste capítulo um ponto destacado por Francisco: 鈥淣este contexto, gostaria de lembrar que eu juntamente com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb pedimos 鈥榓os artífices da política internacional e da economia mundial, para se comprometer seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente鈥� (Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L鈥橭sservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21). E quando uma determinada política semeia o ódio e o medo em relação a outras nações em nome do bem do próprio país, é necessário estar alerta, reagir a tempo e corrigir imediatamente o rumo鈥� (n. 192).

O capítulo VI, 鈥淒iálogo e amizade social鈥� (n. 198-224), reafirma 鈥� em suma 鈥� um verbo muito caro ao atual Pontífice: dialogar (cf. n. 198) e promover, apesar das dificuldades, a 鈥渃ultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro鈥� (n. 215; cf. n. 216-217). Tal diálogo jamais se confunde com 鈥渦ma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável鈥� (n. 200) com menosprezo a quem pensa diferente (cf. n. 201). Aliás, essa 鈥渇alta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar鈥� (n. 202). Sim, 鈥渙 diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos鈥� (n. 203). Nisso, se bem usada, 鈥渁 internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos鈥� (n. 205).

Contudo 鈥� e isso é deveras importante 鈥�, o diálogo não pode ceder lugar ao relativismo a professar sermos incapazes de chegar à verdade como tal (cf. n. 206), ao qual se junta 鈥渙 risco de que o poderoso ou o mais hábil consiga impor uma suposta verdade鈥� (n. 209). E dá exemplo do não matar. 鈥�É uma verdade irrenunciável que reconhecemos com a razão e aceitamos com a consciência. Uma sociedade é nobre e respeitável, nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu apego às verdades fundamentais鈥� (n. 207). 鈥淭emos de nos exercitar em desmascarar as várias modalidades de manipulação, deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada鈥� (n. 208). Afinal, as verdades morais básicas vão além do mero consenso, estão inscritas na natureza humana (cf. n. 211-212).

Mais: 鈥淪e devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente das circunstâncias e exige um tratamento distinto鈥� (n. 213). Nessa sociedade, há de se reconhecer no outro o direito de ser ele mesmo, sem violência, dado que 鈥減or trás da repulsa de certas formas visíveis de violência, muitas vezes esconde-se outra violência mais dissimulada: a daqueles que desprezam o diferente, sobretudo quando as suas reivindicações prejudicam de alguma maneira os próprios interesses鈥� (n. 218).

Também somos convidados a respeitar os povos nativos, especialmente os indígenas (cf. n. 220), bem como abrirmo-nos ao diálogo com todos os povos e até a ceder algo pelo bem comum (cf. n. 221). Já contra o individualismo consumista (cf. n. 222), São Paulo propõe 鈥渦m fruto do Espírito Santo com a palavra grega chrestotes (Gl 5,22), que expressa um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias鈥� (n. 223) e é levada a viver a amabilidade do 鈥渃om licença鈥�, 鈥渄esculpe鈥�, 鈥渙brigado鈥� (n. 224).

Ao concluir este capítulo da 鈥淔ratelli tutti鈥�, a tratar da amizade social, não posso, enquanto monge cisterciense agradecido a Deus pelo dom da minha consagração, deixar de recomendar a obra de um grande Padre cisterciense. Trata-se da 鈥淎mizade espiritual鈥�, de Aelredo de Rievaulx, monge e abade do século XII, que ajuda a cada ser humano a, valendo-se dos sadios laços humanos, transcendê-los ou elevá-los a Deus. Para Aelredo, a amizade deve ser uma escada que conduz ao céu (cf. Amizade espiritual. Oração pastoral. São Paulo: Cultor de Livros, 2017). Elevemo-nos 鈥� pela graça divina que a ninguém falta 鈥�, com esse monge inglês, a tão altos patamares espirituais! 

Chegamos, assim, ao capítulo VII que tem por título 鈥淧ercurso dum novo encontro鈥� (n. 225-270) capazes de nos conduzir à paz sem desejos de vingança (cf. n. 226-227), mas a sermos promotores da reconciliação e do encontro (cf. n. 229 e 232). Importa perdoar o rival de fora como se fosse membro da nossa família (cf. n. 230). Embora longo, devo apenas apontar os itens tratados que recordam, na sua quase totalidade, temas trabalhados recentemente pelo Papa Francisco e que abordei, inclusive, de algum modo, em meus artigos à imprensa.

Podemos dizer que o Santo Padre recomenda neste capítulo: 1) a amizade social com os mais pobres (cf. n. 233), uma vez que a desigualdade e a falta de inclusão social pode ser geradora de violência (cf. n. 234-235); 2) o perdão e a reconciliação (237-239) superando o mal com o bem (cf. n. 243), apesar  de que 鈥渁mar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz鈥� (n. 241); 3) não se esquecer de fatos graves da história para não repeti-los: A Shoah, os bombardeios atômicos de Hiroxima e Nagasáqui (cf. n. 246-247), 鈥渁s perseguições, o comércio dos escravos e os massacres étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros factos históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos鈥� (n. 248). Alguém poderia perguntar: mas como entender o Papa se ele convida a perdoar, e, ao mesmo tempo, a não esquecer dos erros cometidos?

Eis sua própria explicação: 鈥淎queles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou鈥� (n. 251). O que também não redunda em impunidade: quem erra tem de pagar pelo erro (cf. n. 252); 4) condena a guerra injusta e pede que elas nunca mais aconteçam, pois todas deixam o mundo pior do que antes (cf. n. 256-262); 5) recrimina a pena de morte, a prisão perpétua e as ações extrajudiciais (cf. n. 263-268) e 6) defende um mundo de paz no qual se cumpra a profecia de Isaías para os tempos messiânicos: 鈥渢ransformarão as suas espadas em relhas de arado鈥� (2,4).

Eis, assim, mais um trecho da 鈥淔ratelli tutti鈥� a cada irmão e irmã interessado(a) em meditar, com alegria, este novo documento social da Igreja.