ҽ

Card. Lorenzo Baldisseri Card. Lorenzo Baldisseri  

Discurso do Cardeal Baldisseri no Seminário sobre o Acordo Brasil e Santa Sé

"O Acordo como marco das Relações entre a Igreja e o Estado no Brasil" , discurso do Card. Lorenzo Baldisseri no Seminário sobre os 10 anos do Acordo entre o Brasil e a Santa Sé nesta segunda-feira 12 de novembro

Discurso na íntegra:

"Dez anos após a promulgação do Acordo entre a Santa Sé e o Brasil, é uma grande alegria participar deste encontro e compartilhar algumas reflexões sobre o processo que levou à conclusão daquele ato histórico. Um processo que tive a graça de viver como direto protagonista, atuando com o único desejo de dar à Igreja uma nova possibilidade para realizar a sua missão de evangelização na amada Nação brasileira. 

Agradeço, portanto, os promotores da iniciativa, antecipando que tentarei desempenhar a tarefa que me foi confiada através do pensamento diplomático e mediante uma análise jurídica, sem deixar de fora uma reconstrução histórica inspirada no método do grande Tucídides. Tal reconstrução “talvez soe rude ao ouvido”, mas poderá ser útil para aqueles que quiserem “examinar a verdade dos eventos passados” e compreender as consequências do Acordo concluído em 2008[1].

1.  A análise dos acontecimentos passados ​​nos obriga, em primeiro lugar, a uma digressão sobre questões relacionadas às relações entre a Igreja e o Estado no Brasil, que nem sempre foram fáceis, embora frutíferas e, ouso dizer, fecundas em relação ao objetivo de assegurar ao mesmo tempo a natureza própria do Estado e a libertas Ecclesiae.

É sabido que no período colonial português (1500-1822), em que vigorava a legislação da Potência colonial, bem como na fase sucessiva à independência, durante o regime monárquico (entre 1822 e 1889), o catolicismo continuou como religião oficial do país. Na prática, o recém-independente Brasil adotou em seu ordenamento jurídico a Constituição Imperial de 1824, de caráter distintamente confessional e formalizada no artigo 5° do Instituto Padroado, ou seja, o sistema de religião do Estado: “a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo”. Essa mesma legislação também assegurava a liberdade de religião (5º parágrafo do artigo 102): “Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública”. Ao mesmo tempo, conforme previsto em Portugal, perdurou (4º parágrafo do artigo 102), o direito ao beneplácito imperial para a validade ou não no País de “decretos dos Concílios e Letras Apostólicas e quaisquer outras Constituições Eclesiásticas que se não opusessem à Constituição”. Para os regalistas, tais disposições procediam à cristalização do status quo, permitindo que a Igreja continuasse a desfrutar de uma série de prerrogativas exclusivas.

Dois anos depois da promulgação da Constituição imperial, as relações diplomáticas entre o Brasil e a Santa Sé iniciaram-se formalmente: Monsenhor Francisco Correa Vidigal, plenipotenciário enviado a Roma por Dom Pedro I, entregou suas cartas credenciais ao Papa Leão XII. Não se deve esquecer que a Santa Sé reconheceu a independência do Brasil somente em agosto de 1825, após análogo passo adotado por Portugal. Monsenhor Pedro Ostini, primeiro Núncio na América Latina, foi credenciado em 1829 junto ao Imperador Pedro I e designado Delegado Apostólico para toda a América Latina[2].

Apesar desse quadro político, de fato inspirado no interesse mútuo, jamais se pensou na conclusão de uma concordata, isto é, um ato formal através do qual definir os respectivos direitos e obrigações do Estado e da Igreja.

Em 1889, com a proclamação da República, o novo texto constitucional consagrou, por meio do Decreto N.119-A, de 7 de janeiro de 1890, a liberdade de culto para todas as confissões religiosas (artigo 2) das quais a personalidade jurídica era reconhecida. As mesmas disposições, sucessivamente, procederam à extinção do “Padroado” (artigo 4), bem como proibiam a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em questões religiosas. Como consequência daquele Decreto, a Igreja Católica manteve a personalidade jurídica reconhecida pelo Estado com o termo “Mitra Diocesana”, atuando como instituição religiosa pública em diferentes formas e atividades diversas.

Fiel ao método de Tucídides, utilizo o testemunho de um jornalista e intelectual católico da época para ilustrar o andamento político no País durante naquele período. Tristão de Athayde, em sua obra ​​Estudos, afirma: “[...] o que queriam fazer em 1891, era apenas para dar um forte impulso à influência religiosa, não só na vida política, mas também na formação dos futuros políticos. A mentalidade de 1891 era claramente antirreligiosa. A 'liberdade' de que gozava a Igreja e que, sem dúvida, foi um progresso em relação à situação de servidão em que vivia anteriormente, no Império, não era um ‘serviço’ que a República pretendia emprestar. Se houve melhora no relacionamento, certamente não dependeu da vontade dos deputados constituintes[3]”. Criou-se, portanto, um amargo conflito entre a realidade social e a realidade jurídica; entre os verdadeiros sentimentos do povo brasileiro e a cláusula constitucional que tinha a pretensão de representá-lo.   

Ao longo das décadas, estabeleceu-se uma prática costumeira que permitiu que a Igreja e o Estado interagissem, respeitando seus âmbitos de atribuição sem causar maiores dificuldades para alcançar o bem comum da nação. Com quais resultados? Por mais de um século, foi assegurada a laicidade do Estado por um lado e, por outro, o livre exercício das atividades da Igreja foi garantido em todos os aspectos inerentes à sua missão de anunciar a Boa Nova.

2. Sobre o atual Acordo, do qual celebramos uma década em vigor, não podemos esquecer que as premissas remontam a 1953, quando a Conferência Episcopal Brasileira iniciou uma série de colóquios que visavam estipular um tratado com o governo, então liderado trabalhista Vargas. O objetivo das negociações era definir alguns aspectos da vida da Igreja local que poderiam ter implicações jurídicas. As conversações não tiveram êxito positivo, assim como repetidas tentativas nessa direção promovidas pela Conferência Episcopal. Em 1991, apesar de um quadro político não particularmente favorável, o episcopado brasileiro decidiu dar um âmbito mais amplo aos seus esforços, promovendo um acordo não apenas em nível local, mas internacional. Tratava-se de envolver a Santa Sé e o Estado do Brasil, em vez da Conferência Episcopal e do governo nacional.      

Nesse sentido, várias tentativas foram feitas entre a Santa Sé e o Estado brasileiro para iniciar e preparar um projeto de entendimento capaz de estabelecer um status jurídico orgânico. Permaneceram sempre sem sucesso por muitas razões políticas, ideológicas e religiosas. Tudo isso prosseguiu até 2006, quando depois de dois anos de preparação (durante o primeiro quadriênio da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva), se iniciaram as negociações diplomáticas para definir um acordo bilateral entre a Santa Sé e o Brasil. Esta negociação durou dois anos e registrou seu momento de maior sintonia durante a visita do Papa Bento XVI ao Brasil, por ocasião da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, celebrada em Aparecida (SP) em maio de 2007. O encontro do Pontífice com as autoridades brasileiras foi decisivo para a tratativa, permitindo que o efeito esperado se concretizasse com a assinatura do Acordo, em 13 de novembro de 2008, no Sala dos Tratados do Palácio Apostólico, no Vaticano, durante a visita do Presidente brasileiro a Sua Santidade. Seguindo as disposições do direito internacional para a conclusão das negociações, o processo prosseguiu com a aprovação do Acordo, em 7 de outubro de 2009, pelos dois poderes do Congresso Nacional e, portanto, com a entrada em vigor em 12 de dezembro do mesmo ano (2009) após a Troca dos Instrumento de Ratificação, que teve lugar no Vaticano. Um processo complexo, que se encerrou definitivamente com a promulgação do Acordo por meio do Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, publicado no Diário Oficial da União[4].

3. Cada um de nós geralmente acredita que a era contemporânea à que vive é muito significativa, na verdade a mais relevante no curso da história. O que é lógico, dado que é a única em que vivemos. Portanto, falar de guinadas históricas pode ser retórico: seu número é igual ao das gerações. No entanto, é um fato geralmente aceito que o Concílio Vaticano II representou uma dessas guinadas, como demonstra o ensinamento proposto na Guadium et Spes que tem constantemente inspirado a atividade da Santa Sé: “No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autônomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo. Porque o homem não se limita à ordem temporal somente; mas vivendo na história humana, preserva integralmente a sua vocação eterna”[5]. Uma abordagem que evidencia como as exigências, as aspirações profundas e os direitos da pessoa determinam, no relacionamento entre Igreja e Estado, o que é de competência de cada uma das partes.

 Além disso, a Igreja não tem alguma ambição terrena porque, fiel ao mandato recebido de Seu Fundador, pretende “continuar, sob a orientação do Espírito Paraclito, a própria obra de Cristo, que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido”. Partindo deste pressuposto, fica claro que a concordata não é um instrumento extremo ao qual se recorre quando o Estado não cumpre os deveres que sua função e qualificação lhe impõem[6].

Para demonstrar a consistência de tal abordagem, pode contribuir a leitura do Preâmbulo do Acordo de 2008, que evidencia que não se trata mais de definir os limites entre os poderes do Estado e da Igreja com algum tipo de actio finium regundorum, mas sim encontrar elementos, modalidades e espaços a serviço da pessoa, sempre levando em consideração a natureza própria de cada Instituição[7]. Com efeito, o Preâmbulo afirma que: “Altas Partes contratantes são, cada uma na própria ordem, autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna”.

O Acordo se distingue ainda por dois elementos que são constitutivos da vontade das Partes Contratantes. Refiro-me à liberdade e à cooperação, entendidas como a livre intenção de ambas as Partes em dar, segundo as respectivas competências, sua contribuição para alcançar um objetivo comum: o bem do ser humano e da sociedade em que ale atua.

Observando o texto, compreende-se uma estrutura orgânica que não deixa espaço a lacunas e interpretações limitadas. De fato, o Preâmbulo é seguido por 20 artigos relativos à presença da Igreja Católica no país, à sua atividade apostólica e à sua dimensão institucional. São disposições que, sem prejuízo do papel próprio do Estado, mostram o desejo de criar uma harmonia entre as Partes para a realização do bem comum da sociedade. Além disso, o subtítulo do tratado, “Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, indica o tema em questão, as chamadas “materiae mixtae”, como são entendidas e mutuamente reconhecidas pelas Partes Contratantes, justificando razoavelmente o uso do termo Acordo em vez de “Concordata”.

 Essa escolha, aparentemente apenas terminológica, permitiu inserir o tratado com o Brasil na tipologia de “acordos-quadro” (framework agreement) celebrados pela Santa Sé a partir dos anos 80 do século XX com o objetivo de disciplinar relações gerais com os Estados, mas permitindo acordos adicionais ou protocolos adicionais para regular sucessivamente matérias específicas. Nessa linha, o Acordo com o Brasil prenuncia ou prevê dois campos de desenvolvimento de negociações: destinadas a concluir acordos de integração (ajustes) por meio de tratados complementares e acordos (convênios) de execução. Em ambos os casos, sem reabrir a negociação sobre todo o conjunto das matérias reguladas pelo Acordo. Essa orientação segue o disposto no artigo 18 § 1 do Acordo, que se refere a tratados subsequentes para assuntos específicos que podem ser concluídos pelos Bispos e por órgãos governamentais.

4. À luz destes elementos, podemos certamente afirmar que o Acordo sobre o qual estamos refletimos se insere na tendência do “caminho concordatário” que, em meio a várias vicissitudes, tem visto, há quase um século, a crescente atenção da Santa Sé, se levarmos em conta o chamado “renascimento das concordatas” promovido por Bento XV.

Como sabemos, o Brasil, com seus 173,5 milhões de fiéis católicos, correspondentes a 75% da população, é o maior país católico do mundo. Possui 276 distritos eclesiásticos, 474 bispos, cerca de 22 mil sacerdotes e 27 mil religiosas[8]. Estes dados estatísticos são úteis não apenas para configurar a presença da Igreja Católica, em sua dimensão institucional e normativa, mas também para explicar o interesse que levou as autoridades brasileiras a definir um acordo com a Santa Sé. Quem vos fala foi testemunha direta de como, na fase preparatória e sucessivamente, na fase de negociação, foram sempre claras as duas finalidades que orientam a praxe da Santa Sé em relação a acordos com autoridades civis: a libertas Ecclesiae e a tutela efetiva da liberdade religiosa. Por outro lado, os negociadores brasileiros reiteraram constantemente três elementos constitutivos considerados essenciais para a finalização do Acordo: a importância que o texto preservasse os princípios constitucionais da liberdade religiosa e da não-discriminação com base na crença; a necessidade de observar estritamente os limites prescritos pela Constituição no estabelecimento de direitos e deveres relativos à atividade das organizações religiosas nos diversos setores abrangidos no texto; e o imperativo de manter o tratamento igualitário de todas as comunidades ou Igrejas legalmente presentes no Brasil.

Ao mesmo tempo, a determinação em prosseguir com a conclusão do Acordo também permitiu um reconhecimento coerente das várias fontes normativas, inclusive as resultantes de decisões jurisprudenciais[9], do ordenamento brasileiro em matéria eclesiástica. Um fato importante que nos permite afirmar que o Acordo destaca a plena harmonização entre a legislação canônica e a brasileira.

O estatuto jurídico da Igreja determinado em 2008, não mais regulado apenas por disposições estatais sobre religião e culto, mas também por normas internacionais, constitui, sem dúvida, um elemento de grande significado jurídico para a presença e a missão da Igreja no Brasil. Tal afirmação foi posteriormente sufragada pela decisão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil de instituir uma Comissão ad hoc para a implementação do Acordo, que está em permanente contato operacional com as respectivas autoridades governamentais. Além disso, não podemos esquecer que esta é uma das formas de realizar o “princípio de cooperação” que perpassa todo o Acordo e que pede à Igreja que esteja atenta aos objetivos que para ser concretizados necessitam de uma permanente sinergia com os órgãos estatais: é o caso da salvaguarda do patrimônio artístico (artigo 6), das instituições católicas de ensino (artigo 10), dos espaços a serem utilizados para fins religiosos (artigo 14).

É útil aqui recordar os temas tratados no Acordo e, em seguida, destacar especialmente alguns deles.

O artigo 3 refere-se à personalidade jurídica civil, condição indispensável para que a Igreja esteja presente e visível na sociedade brasileira. Ao reconhecer “a personalidade jurídica da Igreja Católica e de todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade em conformidade com o direito canônico”, o Estado compromete-se a dar prevalência à legislação canônica, desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras. O texto apresenta alguns exemplos: “Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica”. A lista não exaustiva (“tais como”) se refere às diferentes estruturas e realidades jurídicas estabelecidas pela ordem canônica.

É reconhecido o direito da Igreja de “livremente criar, modificar ou extinguir todas as Instituições Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo”. Da mesma forma, o texto prevê o procedimento de reconhecimento civil de sua personalidade jurídica, indicando “inscrição no respectivo registro do ato de criação”.

Tal reconhecimento se configura como devido, pois é “vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que passar o ato”. Por sua vez, a Santa Sé declara em relação ao Estado que “nenhuma circunscrição eclesiástica do Brasil dependerá de Bispo cuja sede esteja fixada em território estrangeiro” (artigo 4). 

Como vimos a partir da breve reconstrução histórica das relações entre a Santa Sé e o Brasil, o Acordo também assume a ideia de que os quinhentos anos da presença da Igreja Católica não são apenas um elemento constitutivo da sociedade, mas principalmente um rico “patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas”, cujo valor não é apenas religioso para o País. Por meio do Acordo, a Igreja se compromete em “facilitar o seu acesso para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos”. Por sua parte, o Estado “reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos [...] deve ser salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro”, e concorda em cooperar com a Igreja na proteção deste patrimônio (artigo 6).

Na mesma linha, podemos incluir o artigo 7 do Acordo. O governo brasileiro, de fato, compromete-se a providenciar as medidas necessárias “para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo”. O artigo também garante à Igreja a incolumidade de edifícios, dependências ou objetos afetos ao culto católico, que não podem ser demolidos, ocupados, transportados ou expropriados pelo Estado, “observada a função social da propriedade e a legislação”.  

Finalmente, o Estado se compromete “na destinação de espaços a fins religiosos, que deverão ser previstos nos instrumentos de planejamento urbano a serem estabelecidos no respectivo Plano Diretor” (artigo 14). Também neste caso, é evidente a plena concordância entre as finalidades do ordenamento brasileiro e a missão própria da Igreja, a partir das atividades de culto ou inerentes ao culto. 

5. Gostaria agora de aprofundar três elementos que, após 10 anos, se confirmam como exemplos que demonstram o escopo inovador do Acordo. Inovação que nos permite sugeri-lo como um modelo significativo e funcional para as relações Igreja-Estado orientadas à sana cooperatio vista como garantia da salvação das almas (salus animarum) e do bem comum da sociedade.

O primeiro elemento diz respeito a um dos temas clássicos tratados em normativas concordatárias. Refiro-me às questões educacionais inerentes ao ensino, à liberdade da escola e a uma maior liberdade de formação das pessoas e consciências.

 Estas são áreas em relação às quais é bem conhecida a importância atribuída pela doutrina cristã e a ação da Igreja. Educação, atenção à iniciação cristã na infância e à formação da juventude veem as instituições da Igreja diretamente envolvidas, por vocação e missão. Três artigos do Acordo tratam diretamente da educação. Antes de tudo, a disponibilidade da Igreja “a colocar suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da sociedade, em conformidade com seus fins e com as exigências do ordenamento jurídico brasileiro” (artigo 10 § 1). Estamos diante de uma função social que é própria das escolas ou Universidades Católicas, chamadas a contribuir na realização de projetos educacionais ou programas de escolarização, formação e pesquisa no País. Uma função que pode ser de suplência lá onde o Estado - ou estados partes da Federação - assim o solicitar, em situações em que ele próprio é inapto para intervir.

O Estado, por sua vez, atribui à Igreja Católica “o direito de constituir e administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos de formação e cultura”, reconhecendo os “efeitos civis dos estudos, graus e títulos neles obtidos”, com a única condição de que o reconhecimento seja regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro, “em condição de paridade com estudos de idêntica natureza” (artigo 10, parágrafo 2). Esta disposição se encaixa na reciprocidade mais ampla prevista nos artigos 9 e 10 do Acordo, relativa ao reconhecimento recíproco de títulos e qualificações acadêmicas.

O artigo 11, dedicado ao ensino religioso na educação primária e infantil, apresenta uma definição de princípio: “A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa”. E o primeiro parágrafo concretiza esta decisão: “O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”.

A novidade deste artigo está no fato de que, pela primeira vez na normativa dos tratados bilaterais entre a Santa Sé e outros atores do direito internacional, é previsto o ensino da religião católica ao lado de outras confissões religiosas. Em outras palavras, os direitos de outras entidades e realidades religiosas são protegidos favorecendo o direito à liberdade de religião em seu âmbito amplo e geral dentro de um texto contratual que, por sua natureza, deveria a garantir unicamente os interesses das Partes Contraentes.

Note-se que estas disposições, já existentes seja na Constituição Federal seja na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, são atuadas efetivamente em muito poucos estados da Federação. Não se trata apenas de uma maneira de implementar com coerência o princípio do pluralismo em questões religiosas, constitucionalmente regulado pelo artigo 210 § 1, que prevê o “ensino religioso” na educação obrigatória. Nem a referência ao pluralismo religioso, que é uma das características da sociedade brasileira, é suficiente. Em substância, é precisamente da ação internacional da Santa Sé a atenção à defesa da liberdade de religião de cada fiel, independentemente da sua pertença confessional, de se expressar e formar sua fé através do ensino religioso nos currículos escolares[10]. Surpreende constatar, apesar da clareza do texto do Acordo, a polêmica sobre o caráter “católico” do ensinamento nas escolas públicas causada pelo recente apelo da Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, por uma suposta inconstitucionalidade desta disposição contida no Acordo

 Sobre os temas clássicos da praxe concordatária, se refere também o artigo 12, sobre a validade civil dos casamentos celebrados segundo a forma canônica: “O casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas, que atender também às exigências estabelecidas pelo direito brasileiro para contrair o casamento, produz os efeitos civis, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração”. Essa norma, que vem sendo atuada no Brasil há muito tempo, corresponde às disposições da Constituição Federal e do Código Civil.

 O único elemento de novidade é o disposto no parágrafo 1 deste artigo sobre a validade das sentenças canônicas de declaração de nulidade matrimonial. Esta disposição, pela primeira vez aplicada às sentenças canônicas dos Tribunais Eclesiásticos brasileiros, está prevista na Constituição Federal (artigo 105), que atribui a tarefa de “homologar sentenças estrangeiras” ao Supremo Tribunal de Justiça. O próprio Supremo Tribunal, em 2005, estabeleceu as condições para a homologação: que as sentenças sejam proferidas por uma autoridade competente; que as partes sejam legalmente citadas e a eventual ausência juridicamente comprovada; que seja identificado o instituto da coisa julgada; que seja autenticada pelo Cônsul brasileiro de competência e acompanhada de uma tradução oficial em português.

A terminologia, nova em relação à praxe concordatária, é típica do ordenamento jurídico brasileiro e se refere às disposições do artigo 102, 1, h) da Constituição. De fato, através do procedimento de homologação, o Estado atribui eficácia jurídica a uma sentença proferida por um tribunal eclesiástico, tornando-a executiva mediante um processo junto ao Supremo Tribunal de Justiça. Tanto os cônjuges quanto uma única parte do processo de nulidade podem solicitar a homologação perante os tribunais eclesiásticos.

 O início do processo pelo Supremo Tribunal Federal exige alguns requisitos processuais: primeiro, a existência de duas decisões judiciais (tribunais de primeira instância e segunda instância) declarando a nulidade do casamento e a emissão pelo Supremo Tribunal da Signatura Apostólica do chamado exequatur[11], ou seja, do decreto atestando a aplicabilidade, segundo a ordem canônica, da sentença de nulidade[12]. A jurisdição brasileira verifica a sentença eclesiástica segundo o disposto no artigo  15 da Introdução ao Código Civil e na Resolução n. 9 de 4 de maio de 2005, com o qual o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça deu execução à Emenda Constitucional nº. 45 de 2004, que contempla, entre outras coisas, as competências adicionais às exercidas pelo mesmo Tribunal.

Deve-se notar também que o conteúdo do artigo  12 do Acordo não pode se limitar à aprovação de sentenças de nulidade matrimonial, mas necessariamente se estende também a outros tipos de decisões que o ordenamento canônico prevê a respeito do vínculo matrimonial, como os decretos de dissolução de casamentos “in favorem fidei” emanados pela Congregação para a Doutrina da Fé; ou os rescritos de dispensa do casamento rato e não consumado de competência do Departamento estabelecido na Rota Romana em 30 de agosto de 2011 pelo Motu Proprio Quaerit sempre por Bento XVI. 

Enfim, é peculiaridade do Acordo regular a situação específica dos sacerdotes e daqueles que, de acordo com as disposições do ordenamento próprio da Igreja, possuem um status especial. Refiro-me aos religiosos e aos vários ministros leigos.

O artigo 13 do Acordo afirma: “É garantido o segredo do ofício sacerdotal, especialmente o da confissão sacramental”. Pode-se notar que o Acordo reconhece, além do segredo da confissão, também o “profissional” como parte integrante do exercício do ministério sacerdotal.

É importante também a norma prevista no artigo 16 que, “dado o caráter peculiar religioso e beneficente da Igreja Católica e de suas instituições, O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as Dioceses ou Institutos Religiosos e equiparados é de caráter religioso e portanto, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica” (artigo 16, I). Aqui, a questão é clara tanto no conteúdo da disposição quanto na formulação, de tal forma que causa perplexidade a posição assumida em algumas recentes declarações judiciais que não reconhecem sua clareza e reserva de aplicação.

A segunda parte do mesmo artigo prevê que aquelas “tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, assistencial, de promoção humana e semelhantes poderão ser realizadas a título voluntário, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira” (artigo 16, II).

Uma análise aprofundada mostra que o artigo 16 trata e regula dois temas: o vínculo empregatício entre o Ordinário e o sacerdote ou o diácono, e entre o Superior religioso e o membro do instituto; e o voluntariado nas várias atividades da Igreja. Em relação ao primeiro ponto, deve-se dizer que continua sendo atual, dez anos depois. E isso também considerando os recentes e sérios eventos que envolveram em várias nações sacerdotes, religiosos e bispos em crimes de pedofilia, com consequências espirituais, criminais e civis, que continuam a minar a credibilidade da Igreja.

O incipit do artigo anuncia que o objeto em questão se refere a uma entidade particular, a Igreja, cuja atividade tem um peculiar caráter religioso e de ação social, e, portanto, diferente do exercido por estruturas estatais ou pela sociedade civil. Consequentemente, também as instituições eclesiais têm função peculiar que da Igreja é próprio. No que diz respeito às relações trabalhistas entre a instituição eclesial e seus membros, eclesiásticos, religiosos e equiparados, o artigo 16 abre um novo horizonte, não tanto porque é desconhecido, mas porque nunca foi usado como norma geral pelos Estados e nem pelo direito canônico. No Brasil, apenas em casos de litígios e, portanto, em processos, o tema vem à tona. Gostaria de acrescentar que as sentenças emanadas sobre a questão ajudaram a formular o conteúdo do artigo, respeitando a constituição e, mais amplamente, o ordenamento jurídico nacional.

O vínculo empregatício dos membros pertencentes à Igreja e às suas instituições deve ser regulado por normas canônicas e, portanto, na sociedade civil, a Igreja não tem responsabilidade contratual nas relações trabalhistas, bem como nas formas de colaboração voluntária estabelecidas no âmbito das instituições eclesiásticas. A referência ao “caráter religioso” da relação entre a instituição eclesiástica e os diferentes christifideles que nela operam prevalece sobre o “vínculo empregatício” e a atuação patrimonial típica da relação trabalhista. A natureza religiosa do emprego é, portanto, prevalente, porque se reconhece que as instituições da Igreja não têm caráter comercial ou se destinam a atividades econômicas, a menos que tais conotações não sejam distorcidas (desvirtuamento). Só então uma relação de trabalho normal pode ser estabelecida entre as partes.

Analogamente, as mesmas considerações se aplicam à realização de trabalho voluntário que o Acordo no parágrafo 2 do mesmo artigo 16 identifica como atividades de natureza “apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, assistencial, de promoção humana e semelhantes”.

Permitam-me duas considerações sobre esse aspecto. A primeira é que o Acordo continua sendo o primeiro ato, sobretudo de caráter internacional, a acolher a necessidade de regulamentação desta matéria, tornando-se uma possível referência para outras situações em que seja necessário ou desejável regular esse tipo de relação. A segunda, que se baseia no excelente texto de Yves Gandra Martins Filho[13], é que a relação trabalhista nas instituições pertencentes à Igreja no Brasil é regulada pela ordem canônica de uma forma que permanece exclusiva, mantendo simultaneamente sua ligação com a consolidada jurisprudência nacional sobre o tema.

Em relação à remuneração adequada dos clérigos, o Código de Direito Canônico prevê, no Canon 281 §1: “Os clérigos, quando se dedicam ao ministério eclesiástico, merecem uma remuneração condigna com a sua condição, tendo em conta tanto a natureza do seu múnus, como as circunstâncias dos lugares e dos tempos, com a qual possam prover às necessidades da sua vida e à justa retribuição daqueles de cujo serviço necessitam”. Sobre a assistência social, o parágrafo 2 estabelece: “Também se deve providenciar para que desfrutem da assistência social, com a qual se proveja convenientemente às suas necessidades, se sofrerem de doença, invalidez ou velhice”. Para diáconos casados, o parágrafo 3 estabelece: “3. Os diáconos casados, que se entregarem plenamente ao ministério eclesiástico, merecem uma remuneração com que possam prover à sua sustentação e à da família; mas aqueles que tiverem remuneração pela profissão civil que exercem ou exerceram, provejam às suas necessidades e às da família com essas receitas”.

Para os membros dos dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica, o can. 670 diz: “O instituto deve subministrar aos religiosos tudo o que, nos termos das constituições, é necessário para alcançarem o fim da sua vocação”. A extrema síntese dessa disposição responde exatamente à forma de vida própria dos institutos de vida consagrada, livremente escolhida por cada um de seus membros e reconhecida pela Igreja

Trata-se evidentemente de regras em plena harmonia com o direito da pessoa à remuneração pela atividade realizada ("dignus est operarius mercede sua" Lc, 10,7), conforme declarado e reconhecido em convenções internacionais e legislações nacionais.

6. Um Acordo, portanto, que oferece muitos pontos de reflexão em seu conteúdo e nas maneiras com as quais aborda os objetivos que deseja perseguir e as instituições que é chamado a regulamentar. Isso é mostrado pelo conteúdo do artigo 18 § 1, que deixa a posteriores ajustes adicionais a tarefa de abordar aspectos específicos, prevendo a possibilidade de futuros convênios que o episcopado local poderá negociar com as autoridades governamentais.

Sua implementação contribuirá certamente na vida da Igreja e da comunidade política, mas estará sujeita a interpretações em vários níveis. São aspectos que, se não orientados pela coerência própria da ciência jurídica e não respaldados por uma sábia gestão das relações Igreja-Estado, arriscam suplantar a cooperação leal e assim, comprometer o bem comum da Nação: dois pilares irrenunciáveis aos quais, em 2008, Brasil e Santa Sé se inspiraram e vincularam o Acordo alcançado". 

Notas:

 [1] TUCIDIDE, Storie, Libro 1, par 21.

[2] Malaquias Junior Moacyr, Acta diei academici: La storia dei patti tra la Santa Sede e il Brasile, in Antonianum, LXXXVI (2011/III), pp. 519-529.

[3] Ibid.

[4] Cf. Sezione 1, 12.2.2010, p.6.

[5] Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 76

[6] Neste sentido, aconselho a leitura de F. Cavagnis, Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici, vol. I, 3a ed. Desclée, Roma s/d (1862 ca), p. 394

[7] V. Tozzi, Patto e diversità di fini tra Stato e confessioni religiose, in Quaderni di Politica Ecclesiastica, 1972/4, pp. 172-176

[8] Secretaria Status Rationarium Generale Ecclesiae, Annuarium Statisticum Ecclesiae 2016, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2018, p.95.

[9] De modo especial, trata-se do reconhecimento da personalidade jurídica de instituições eclesiásticas (Acordo, art. 3) ou de isenções fiscais e imunidades tributárias para atividades de tipo filantrópico (Acordo, art. 5, 7 e 15), já tema de decisões judiciárias em diversos níveis da jurisdição brasileira.

[10] Para uma referência detalhada da visão da Igreja e o conteúdo da ação internacional da Santa Sé sobre o direito à liberdade de religião, ver Giovanni Paolo II, Messaggio ai Capi di Stato dei Paesi firmatari l’Atto Finale di Helsinki, 1º settembre 1980.

[11] Cf. E. Giarnieri, Il Decreto di esecutività della Segnatura Apostolica, in B. De Filippis (a cura di) Nullità dei matrimoni e tribunali ecclesiastici. Giudizi di delibazione e conseguenze sui processi di separazione e divorzio, Padova 2010, pp. 153-176.

[12] Para referências mais detalhadas, ver Oliveira, M. R. de, La lettera circolare del Supremo Tribunale della Segnatura Apostolica e l’art. 12, § 1º dell’Accordo tra la Santa Sede e la Repubblica Federativa del Brasile, in Antonianum, LXXXVI (2011/III), pp. 561-584.

[13] Cf. Yves Gandra Martins Filho-Lorenzo Baldisseri, Acordo Brasil-Santa Sé Comentado, ed. LTR, Sao Paulo, 2011, p. 365 ss.

 

 

Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp

12 novembro 2018, 09:27